Todos na família a chamavam de Bobe, tardei em saber que a palavra “bobe”, em ídiche, significa vó. Ela nasceu na Ucrânia, em 1885, veio casada e com filhos para o Brasil em 1919 e nunca se disse ucraniana. Era de Tolchin, cidade situada entre a capital Kiev e o porto de Odessa, um dos maiores do país invadido pela Rússia.

Minha avó, a Bobe, nunca queria falar do seu passado, pois dizia que tinha más recordações. Uma tia contou que os judeus viviam ameaçados pelos cossacos, que invadiam as aldeias para saquear e matar. Cansei de perguntar a Bobe sobre o passado e ela não se cansava de dizer que preferia não falar, seu silêncio sobre o passado foi impressionante. Essa mulher era forte, uma líder familiar, uma segunda mãe, pois vivia na nossa casa. Foi a única pessoa que se dizia judia e só judia, nunca se sentiu de outra nacionalidade; falava o português com dificuldade, preferia falar em ídiche. Quando, nos primeiros anos, não falei, todos se preocuparam, menos ela, que dizia: “Não fala mas escuta e entende o que se fala, logo irá falar”. Meus primeiros anos passei no colo dela, que cantava diante das fortes chuvas: “Chuva vai, chuva vem, chuva miúda não mata ninguém”. E eu me sentia seguro.

Tudo isso me vem à mente nos últimos dias devido à invasão da Ucrânia sob o comando de um verdadeiro czar da Rússia. A Bobe viveu a guerra entre a Rússia e o Japão em 1905 e depois a Primeira Guerra Mundial, nas quais seu esposo lutou, e cedo aprendeu a enfrentar a fome e a lutar pelo alimento dos filhos. Cansei de escutar histórias dos tios sobre sua coragem, a capacidade de superar o medo, enfrentar a guerra e os cossacos que atacavam as aldeias judaicas. A Bobe ucraniana que só se dizia judia sabia tirar as cartas para ler o futuro, aprendera com as ciganas ucranianas. Meu pai acreditava nela e jogava paciência, e eu gosto de escrever cartas.

perto de nós

Sempre me interessei pelos avós dos outros, já que só conheci uma avó. No livro As Palavras, do filósofo Jean-Paul Sartre, ele escreveu sobre seu avô, com quem aprendeu o amor aos livros. A função dos avós é da ordem das transmissões, e o legado que recebemos são metabolizados num processo de autonomia. Assim nos humanizamos e aprendemos, um pouco mais, quem é mesmo cada um, a história de cada um de nós. Aos poucos vão conhecendo o passado e trazendo ele para hoje em direção ao amanhã. A família se integra em cada pessoa desde duas perspectivas: uma a que se chama horizontal, que ocorre através das identificações na vida de cada um. O outro eixo é o vertical, que inscreve cada pessoa em várias gerações da história. Conviver com os avós enriquece a vida dos netos, dá uma visão histórica de sua família e rejuvenesce os avós.

Um exemplo desse passado é o local onde fica a torre de TV bombardeada por forças russas no dia 1º de março, justamente ao lado da praça onde ocorreu um dos maiores massacres judeus pelas forças alemãs. Durante a Segunda Guerra Mundial, nessa praça havia uma ravina – uma fenda profunda no solo devido a erosão – chamada Babi Yar. Nessa ravina, foram fuzilados 34 mil judeus em dois dias. Aliás, Kiev era um importante centro cultural e espiritual da vida judaica na Europa desde o século 18.

Em homenagem aos mortos, o poeta russo Yevgueni Yevtushenko escreveu em 1961 o poema Babi Yar como protesto contra as autoridades soviéticas que se recusavam a homenagear os judeus massacrados na ravina.

Babi Yar

De Yevgueni Yevtushenko, 1961. Tradução de Benjamin Okopnik

Nenhum monumento fica sobre Babi Yar.
Apenas um penhasco íngreme, como a lápide mais tosca.
Eu estou com medo.
Hoje, sou tão velho
quanto toda a raça judaica.
Eu me vejo como um antigo israelita.
Vagueio pelas estradas do antigo Egito
E aqui, na cruz, pereço, torturado
E mesmo agora, trago as marcas dos pregos.
Parece-me que Dreyfus sou eu mesmo.
Os filisteus me traíram – e agora julgam.
Estou em uma gaiola. Cercado e encurralado,
sou perseguido, cuspido, caluniado, e
As bonecas delicadas em seus babados de Bruxelas
Gritam, enquanto apunhalam guarda-chuvas no meu rosto.
Eu me vejo um menino em Belostok
Sangue se derrama, e corre pelo chão,
Os donos de bar se enfurecem desimpedidos
E cheiram a vodka e a cebola, meio a meio.
Sou jogado para trás por uma bota, não tenho mais forças,
Em vão imploro à ralé do pogrom,
Para zombarias de “Mate os judeus e salve nossa Rússia!”
Minha mãe está sendo espancada por um funcionário.
Ó Rússia do meu coração, eu sei que você
é internacional, por natureza interior.
Mas muitas vezes aqueles cujas mãos estão imersas em sujeira
Abusaram do seu nome mais puro, em nome do ódio.
Conheço a bondade da minha terra natal.
Que vil, que sem o menor tremor
Os antissemitas se proclamaram
A “União do Povo Russo!”
Parece-me que sou Anna Frank,
Transparente, como o ramo mais fino de abril,
E estou apaixonada, e não preciso de frases,
Mas apenas que nos olhemos nos olhos.
Quão pouco se pode ver, ou mesmo sentir!
As folhas são proibidas, o céu também,
Mas muito ainda é permitido – muito gentilmente
Em quartos escuros um ao outro para se abraçar.
“Eles vêm!”
“Não, não tema – são sons
da própria primavera. Ela volta logo.
Rápido, seus lábios!”
“Eles quebram a porta!”
“Não, o gelo do rio está quebrando…”
Grama selvagem farfalha sobre Babi Yar,
As árvores parecem severas, como se estivessem julgando.
Aqui, silenciosamente, todos os gritos, e, chapéu na mão,
sinto meu cabelo mudando de tom para cinza.
E eu mesmo, como um longo grito mudo
Acima dos milhares de milhares enterrados,
sou cada velho executado aqui,
Como sou cada criança assassinada aqui.
Nenhuma fibra do meu corpo vai esquecer isso.
Que “Internacional” troveje e soe
Quando, para sempre, for enterrado e esquecido
O último dos antissemitas nesta terra.
Não há sangue judeu que seja meu sangue,
Mas, odiado com uma paixão que é corrosiva
Sou eu por antissemitas como um judeu.
E é por isso que me chamo de russo!
(Publicado na Zero Hora 5/6 de março de 2022)

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli. Clique aqui para ler artigos do autor.