Críticas ao processo que tornou Bolsonaro inelegível

No final de junho, o Tribunal Superior Eleitoral, julgando Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), julgou-a parcialmente procedente e, em consequência, declarou a inelegibilidade do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, pelo prazo de oito anos, a contar do pleito presidencial passado.

A decisão, proferida por expressiva maioria daquele Colegiado – cinco votos a dois – já era esperada pelo mundo jurídico e político; mas, mesmo assim, também como se esperava, provocou queixas e protestos, embora não tão numerosos e veementes, entre os adeptos do político declarado inelegível. Nada surpreendente, em se tratando de grei alimentada continuamente, nos últimos anos, pelas assacadilhas urdidas por seu “mítico” líder contra os ministros daquela Corte Superior e do Supremo Tribunal Federal – responsáveis por estancar os avanços golpistas e antidemocráticos por ele empreendidos, durante e após sua desastrosa gestão governamental.

O que, sim, surpreende são algumas críticas oriundas do campo democrático – e, até mesmo, da esquerda – que teriam vislumbrado no posicionamento adotado pela instância máxima da Justiça Eleitoral mais um caso do que se tem chamado, equivocadamente, de “judicialização da política”; ou mesmo que, ao proferir aquela decisão, considerada “inédita”, o Tribunal teria extrapolado sua competência. Além de manifestamente errôneas, do ponto de vista jurídico, estas considerações, partindo de quem partem, permitem ilações perigosas que convém refutar, em defesa da democracia e suas instituições. Senão, vejamos.

No que se refere à suposta judicialização, ou ativismo judicial, deve-se lembrar que se trata de fenômeno caracterizado pela intervenção indevida dos órgãos do sistema de justiça no próprio mérito das disputas políticas. Não lhes é vedada, no entanto, a apreciação de questões de natureza política; muito ao contrário, pelo princípio da inderrogabilidade da jurisdição, os juízes e tribunais, sempre que acionados pela cidadania – inclusive pelos atores políticos – são obrigados a conhecer e julgar as demandas que lhes são trazidas.

Nestes casos, cabe-lhes fazer o exame da legalidade dos procedimentos e condutas questionados – isto é, de sua adequação às leis e princípios constitucionais de regência. O que, sim, não podem fazer, é emitir juízo sobre sua conveniência ou oportunidade – o que constitui o próprio mérito dos atos administrativos ou políticos. Somente se o fizerem os magistrados e colegiados judiciais extravasariam suas competências, legal e constitucionalmente estabelecidas.

E, evidentemente, no caso de que se trata, não foi isso o que ocorreu: ao apreciar e julgar a AIJE 060081485 proposta pelo PDT, o Tribunal Superior Eleitoral nada mais fez do que exercer a competência que lhe foi atribuída pela Constituição Federal, em seus artigos 118 a 121 – no cumprimento de sua missão institucional de zelar pela integridade e regularidade do processo eleitoral. Não por outra razão, aliás, a mesma Carta Magna incumbiu expressamente o legislador de editar lei destinada, entre outras finalidades, a proteger “…a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta…” (artigo 14, § 9º, grifamos).

Foi exatamente este abuso ilegal de poder, cometido pelo então chefe do Executivo, o que se demonstrou irretorquivelmente na ação eleitoral em questão, em relação à malfadada reunião que ele convocou e foi realizada em 18 de julho do ano passado, a pouco mais de dois meses da eleição presidencial, com a representação diplomática credenciada em Brasília. Como se sabe, na ocasião, prosseguindo em sua campanha difamatória contra a Justiça Eleitoral, ele proferiu seu costumeiro discurso raso, tacanho e ofensivo, recheado de fatos inverídicos ou distorcidos, visando a desacreditar o sistema de votação eletrônico e sugerindo, ademais, a ocorrência de fraudes nos pleitos pretéritos e naquele que se avizinhava.

Destarte, restando caracterizada a prática, entre outros, dos ilícitos previstos nos incisos I e II, do artigo 73, da Lei n. 9.504/97 – cessão de bens móveis e imóveis pertencentes à União, em favor de candidato; e uso indevido de materiais ou serviços custeados pelo Governo Federal – a consequência jurídica que se impunha não poderia se outra senão aquela adotada pela Corte Superior Eleitoral, qual seja, a declaração da inelegibilidade do boçal personagem, içado mediante desastrosa conjugação de fatos à primeira magistratura nacional.

Como se observa, juridicamente falando, não há qualquer sentido nas alegações de que aquele Colegiado teria desbordado de suas funções; e tampouco, de que teria proferido decisão inédita – quando é certo que, no particular, seguiu estritamente a farta jurisprudência sobre o tema. A propósito, se há ineditismo no episódio aqui examinado, ele se circunscreve à espantosa conduta do então titular da Presidência da República, ao lançar mão, inescrupulosa e escandalosamente, de seus poderes e meios, desviando-os abusivamente em favor de sua candidatura – felizmente repudiada pela maioria do eleitorado.

Mas, além dos seus aspectos constitucionais e legais, aquela oportuna e necessária decisão afirma a melhor tradição histórica da Justiça Eleitoral brasileira – instituição da maior importância, criada como resultado direto da Revolução de ‘30, movimento inegavelmente modernizador das nossas instituições sociais e políticas (embora também inegavelmente autoritário), e responsável por colocar o Brasil no século XX.

Com efeito, diferentemente do que fizeram outros países, que preferiram criar organismos especificamente voltados à organização e condução do processo eleitoral, a Constituição de 1934 deferiu ao Poder Judiciário a competência para fazê-lo – como forma de discipliná-lo sob regramento legal prévio e conhecido, bem como preservando-o das pressões indevidas dos atores políticos.

O julgamento em tela é mais uma demonstração do acerto desta opção, quase centenária.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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