Cena de Os deuses malditos, Visconti.

Pode ser que os agrupamentos ou partidos do centro político (que pendula às vezes mais para cá às vezes mais para lá) que desde o pós-guerra vem administrando o Estado parlamentar democrático na Europa aqui e ali se assustem com as tensões geradas no seu interior. É gente que se comporta bem, dificilmente eleva o tom da voz, ao menos em público e que realmente se delicia quando o mar está calmo, os subalternos sob controle, a raiva contida e os negócios podem prosperar (a elegante sala de jantar dos von Essanbeck e seus comensais no início de Os Deuses Malditos de Visconti é uma das imagens que podem servir para ilustrar o estilo). Estabelecida a ordem natural da casa (para eles), a hierarquia política e social, que se mantenha o equilíbrio. O charmoso equilíbrio. Eles se vestem bem, sabem se vestir bem, podem se vestir bem – mas não ostensivamente. Autênticos cultivadores da moderação, dos meio tons, do controle do pulso (e das pulsões).

Durante gerações aprenderam a se comportar na mesa e nunca deixar o sangue subir à cabeça, intumescer as veias. A boa racionalidade, dizem. A racionalidade das operações financeiras e dos sistemas produtivos, do chão de fábrica, da linha de produção. A alteração do ritmo prejudica o resultado. Seu mundo é o raso das aparências e das superfícies deslizantes. Os elementos que habitam o escuro inconsciente devem ser mantidos sob rigorosa vigilância. Não seria mal poder suprimi-lo. Mas, porque são racionais e cultos, descobriram que isso não é possível. Ao menos terão lido a respeito. O submundo deve ser mantido longe do olhar. Distante das avenidas e dos centros comerciais e dos centros de poder, destes mais ainda, o mais distante possível. Distante do visível, como se, ao não ser visível não fosse parte do real, inexistisse por ter se tornado invisível.

E quando for necessário o uso da força, da violência do Estado, a ação da polícia para manter a quietude dos subordinados e as coisas como elas devem ser, naturalmente o medo não fará tremer as mãos que assinarão as ordens de execução. As razões de Estado lhes fornecerão o devido alívio de consciência – se acaso fosse necessário. Mas, na realidade, não há consciência. Porque não é de consciência que se trata, mas de razão. A que lhes seja útil. A noção de bem e mal para essa cultura política de centro (à esquerda e à direita) lhes diz que o bem é o que é bom para a manutenção da estabilidade desse mundo e dessa paz social da qual tem o controle e do qual são os principais beneficiários. Ainda que a memória da experiência nazi fascista tenha verdadeiramente criado uma denegação importante em muitos deles, ainda que o medo de que experiências semelhantes criem corpo novamente, mova o comportamento e o discurso desse centro, o condicionante essencial da sua ação está na manutenção da paz social tal qual está estabelecida e sob o seu estrito comando.

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Porque há muito para ser defendido, bens de dimensões titânicas. A concentração da riqueza aponta, de novo, cada vez mais para o topo. Sabe-se lá se o céu é o limite, tão distante está das vistas do cidadão comum.

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Mas, face ao que se verifica na sede do Império a Europa é, se não o paraíso (longe disso), uma espécie de contrapeso, onde o que pelo menos por hora sobrevive e serve para pôr algum freio à selvageria do Império é o que sobrou da organização dos não proprietários e seus eventuais desacordos com o acerto feito no topo.

É verdade que a memória desses choques está sendo lenta e persistentemente apagada, mas ainda persiste. Na França, no final dos anos 2010, uma compacta greve nacional deu sequência a mais de um ano de mobilizações e revoltas. Durante algumas semanas as ruas de Paris foram tomadas por multidões de franceses. Pelo menos uma parte da população tentou resistir à reforma liberal do presidente para liquidar com o que um comentarista da imprensa espanhola chamou de “a mais generosa legislação trabalhista da Europa”.

Trecho do livro “A Noite Belga”, recentemente publicado pelo autor. Clique aqui para ler uma resenha da obra.

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