As fazendas estatais da China  continuam estratégicas para economia do país 

Este texto objetiva trazer em perspectiva as fazendas estatais na China. Desde o início da década de 2000, elas têm retomado proeminência na organização rural do país e são apontadas por alguns autores — por exemplo, Escher (2022) — como atores centrais na estratégia nacional de integrar a agricultura à indústria e aos serviços, bem como de estabelecer novas formas de contratação da produção agrícola dos agricultores. Trata-se, em nossa avaliação, de uma estratégia peculiar à República Popular da China (RPC) que, ao longo das décadas e sob os planos quinquenais, foi assumindo funções e seguindo diretrizes capazes de garantir a estabilidade no rural, sobretudo.

Durante o Grande Salto Adiante, de acordo com Zhang (2010), as fazendas estatais experimentaram um crescimento explosivo: de 804 em 1957 para 2.123, em 1962. Da mesma forma, a área agricultável ocupada por fazendas estatais aumentou: de 15,8 milhões de mu, em 1957, para 50 milhões de mu, em 1965. Durante os anos de Revolução Cultural, as fazendas estatais localizadas em regiões de fronteira se tornaram o destino de milhares de jovens das cidades que cumpriam com o lema maoísta “up the mountains, down the countryside”.

Na década de 1970, as reformas econômicas fizeram com que esse sistema passasse a ser tomado como de baixa eficiência e produtividade. Dados de Liu (1999) apontam que, em 1978, o sistema de fazendas estatais, apesar do elevado investimento — RMB 4,7 bilhões acumulados –, incorria em muitas perdas. E suas atribuições foram sendo reduzidas, o que não impediu que elas seguissem desempenhando ‘funções governamentais’, na zona rural, comparadas às das empresas estatais na zona urbana.

Esse sistema estatal de fazendas existe desde a fundação da República Popular da China e sempre cumpriu papéis na política nacional para a agricultura do país. A origem das fazendas estatais, de acordo com Zhang (2010), confunde-se com as origens do PCCh (Partido Comunista da China). Para sobreviver ao bloqueio imposto pelo governo nacionalista, durante a era Yan (1935–1948), os comunistas se viram obrigados a produzir sua própria oferta de grãos e as forças militares promoveram projetos que ficaram conhecidos como “Movimento da Grande Produção”, que estabeleceram as fazendas estatais. Durante a Guerra Civil, esse modelo foi transposto para o noroeste do país, região em que o PCCh conquistou sua primeira vitória contra os Nacionalistas.

No início da RPC, cumpria com as seguintes funções primordiais: emprego para o pessoal desmobilizado dos exércitos, após o fim da revolução; muitas fazendas localizadas em áreas de fronteira foram organizadas como unidades paramilitares para garantir a segurança e proviam alimentos e fibras para alimentação e para estabilizar a economia nacional, devastada por anos de revolução e guerra civil (ZHANG, 2010).

Grande número de fazendas estatais foi estabelecido em três regiões: província de Heilongjiang, na região noroeste, região autônoma de Xinjiang e nas áreas subtropicais em Yunnan, Guangdong e Hainan. Em Three-Rivers Plain, no noroeste da China, margeado pela Sibéria da parte soviética no rio Amur, elas formavam uma área chamada de “Great Northern Wildeness”. Seu estabelecimento nessa região se dava pela topografia, que facilitava a agricultura mecanizada, aproveitando o maquinário agrícola que a ex-URSS provia à China. Possuem uma profunda ligação com o People’s Libertation Army e na defesa das áreas de fronteira.

Sua perda de espaço na política agrícola chinesa — em comparação com os primeiros anos da RPC — teria iniciado com a introdução do HRS (sistema de responsabilidade familiar), de fins da década de 1970 a início de 1980.

Modernização agrícola e revitalização do rural

Desde os primeiros anos, em 2004, em que os documentos de política do CE (Conselho de Estado) passaram a colocar a modernização agrícola como meta do desenvolvimento econômico chinês, teve início a discussão de a China experimentar uma transição agrária capitalista. Por outro lado, as empresas estatais foram adquirindo maior escala de produção, atingindo liderança de mercado, algo que foi usado por autores como Zhang (2010) para colocar em discussão, comum na época, a ideia de que a agricultura seria impenetrável ao capitalismo.

Sua recuperação de importância pelo CE, após seu relativo abandono na década de 1990, tem se dado por meio da ampliação de maquinário e de fertilizantes, sobretudo. Zhang (2019) pontua que as empresas estatais têm sido incluídas como um dos atores que executará a política agrícola internacional da China. Áreas de fazendas estatais de larga escala, como Heilongjiang State Farm, Guandong State Farm, Xinjiang Production and Construction Corps, dentre outras, têm sido cada vez mais atores preponderantes.

Nos últimos anos da década de 2010, as fazendas estatais foram explicitamente retomadas pelo CE como atores estratégicos para fortalecer a economia agrícola do país. Por se localizarem em regiões mais remotas e com maior área agricultável e por serem unidades com maior tamanho, as fazendas estatais se caracterizam por viabilizar um grau maior de modernização. Dessa forma, em 2015, o CE e o Comitê Central do PCCh as avaliaram como sendo um instrumento para modernizar a agricultura, o que acabaria por induzir a modernização das demais fazendas do país, descrevendo-as como as unidades representativas e de suporte do desenvolvimento agrícola do país.

De acordo com Wegner (2023), de 1996 a 2017, a tecnificação das fazendas estatais foi ampliada em termos de número de tratores utilizados e de consumo de fertilizantes, que aumentaram consideravelmente mais do que o aumento de mão de obra empregada, assim como a escala de produção. Os dados mais recentes da base China Statistical Yearbook, mostram que em 2021 havia 1.787 fazendas estatais no país, um aumento de 1,65% em relação a 2017, 9% em relação a 2003 e uma redução de 16% em comparação a 1996. A área total cultivada nas fazendas estatais em 2021 representou 4% da área total cultivada no país, uma redução em comparação a 2017, quando representavam 4,4% da área total cultivada no país. O número de empregados por fazenda estatal tem se reduzido anualmente desde 1996 — em 2021, 68% em comparação a 1996. E o de tratores aumentou, assim como o valor bruto da produção — tomando apenas entre 2021 e 2017, 8% e 21%, respectivamente.

Fazendas estatais sob novos formatos

No período mais recente, portanto, as fazendas estatais passaram a ser potencializadas enquanto conglomerados empresariais. Abaixo, alguns exemplos de destaque.

Xinjiang Production and Construction Corps (XPCC) é uma das principais fazendas estatais chinesas. Porém, é descrita como uma empresa estatal de organização paramilitar e que detém autoridade sobre uma série de pequenas e médias cidades, bem como fazendas em Xinjiang, tendo por uma função básica a apropriação de terras (SEYMOUR, 2000). Sua criação, em 1954, é do período em que o exército se responsabilizava pela construção de infraestrutura no campo, como forma de proteger o território nacional nas áreas de fronteira. A XPCC atua na integração entre indústria, agricultura, transporte, distribuição e comércio, com 60% de suas atividades associadas à agricultura de larga escala.

Desde 2017, a XPCC tem sido acusada, em relatórios produzidos pela Helena Kennedy Center for International Justice na Sheffield Hallam University no Reino Unido e, em 2020, pelo U.S. State Department de violações e abusos aos direitos humanos em Xinjiang. Dentre as acusações, estão: trabalho forçado, expropriação de terra, perseguição religiosa. Grupos étnicos de Xinjiang — principalmente os Uyghurs e Kazakhs — estariam entre as vítimas mais diretas (WYK, 2022). O fato de a XPCC assumir preponderância na estratégia chinesa de desenvolvimento agrícola e rural explicaria, de acordo com Wyk (2022), que ação alguma tenha sido tomada.

Heilongjiang Beidahuang State Farm Group Corporation — ou Beidahuang Group — é uma fazenda estatal de produção de larga escala fundada pelo Ministério das Finanças (MoF), localizada a noroeste da China, na província de Heilongiang, a maior produtora de grãos do país. É considerada uma das demonstrações do aumento de produtividade agrícola na China, uma vez que 20 milhões de toneladas de grãos foram produzidos por oito anos consecutivos. Tem desempenhado liderança no desenvolvimento industrial e tecnológico na zona rural e mantém entre suas marcas: Beidahuang, Wondersun e Jiusan, as quais, em 2018, tinham valor estimado em torno de: RMB 68.275 bilhões, RMB 32.869 bilhões e RMB 31.798, respectivamente. Os principais esforços desta fazenda estatal têm sido para se tornar um player global do agronegócio, em tecnologia de ponta para o setor.

Essa fazenda estatal, corporatizada, sob a denominação de Beidahuang Group tem realizado investimento externo em países como o Brasil com a aquisição da operação de milho da Dow AgroScience.

As fazendas estatais são próprias das economias socialistas e permitem a coletivização dos meios de produção e da produção (NOLAN, 1988). Seu papel recente para agricultura da China as coloca em um estágio diferente daquele inicialmente assumido na RPC. A estratégia de modernização da agricultura da China tem levado à reformulação das fazendas estatais, mas elas seguem como atores essenciais na coordenação pelo CE do desenvolvimento rural da China. Estão cada vez mais entrelaçadas à promoção, pelo Estado, da grande agricultura. (Publicado pela Mundorama, 19/01/2024)

Referências

  • LIU, Liangyu. How did state farms implemented the household production system. Economics of Agriculture and Reclamation in China, v.2, p.2–4. 1999.
  • NOLAN, Peter. The Political Economy Of Collective Farms: An Analysis Of China’s Post-mao Rural Reforms. Routledge: New York, 1988. 259pp.
  • SEYMOUR, James D. Xinjiang’s Production and Construction Corps, and the Sinification of Eastern Turkestan. Inner Asia, v.2, n.2, 171–193pp. 2000.
  • WYK, Barry van. What does the Xinjiang Production and Construction Corps do, aside from forced labor? The China Project, Business & Technology. 8 de Agosto de 2022.
  • ZHANG, Hongzhou. Securing the ‘rice bowl’: China and global food security. Palgrave Macmillan: Singapura. 2019. 310p.
  • ZHANG, Qian Forrest. Reforming China Reforming China’s State-Owned farms: State Farms in Agrarian Transition. Paper presented at the Asian Rural Sociology Association International Conference, Legazpi City, Philippines. 2010. 15p.

 

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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