Gaspar Lemos, em 1504, teria sido o primeiro navegante português a aportar às terras cariocas. Esse desembarque teria ocorrido em um istmo situado entre os morros Pão de Açúcar e Cara de Cão (hoje, Morro de S. João). Nesses termos, o atual Município do Rio de Janeiro (MRJ) ‘nasceu’ no lugar que veio a ser denominado posteriormente de bairro da Urca. A escolha desse sítio, então relativamente inóspito e de difícil acesso, seria explicada por razões de segurança, dado que ataques índios e de expedições corsárias eram então recorrentes. Porém, essa presença (portuguesa) teria durado apenas de dois a três anos. Tanto que outro navegante, igualmente português, Fernão de Magalhães, após passar pela baía da Guanabara (1519), declarou que as terras referidas estavam abandonadas. Ou seja, nesses primeiros aproximados 20 anos pós-1500, excluindo alguns poucos nativos que nelas habitavam, o que hoje conhecemos como Município do Rio de Janeiro não possuiria nem território (que apenas existe se usado, conforme Milton Santos) e, assim sendo, tampouco gente. Enfim, ele seria um não-lugar.
As ‘coisas’ apenas começam a mudar quando da invasão francesa comandada por Villegaignon (1555). Isso porque essa, diferentemente das demais invasões (‘estrangeiras’), que eram orientadas somente pela perspectiva de saque, visava fundar uma colônia de povoamento (a França Antártica). É dizer: apossar-se das terras cariocas e nelas se estabelecer fundando uma cidade (Henriville). Advertido, o rei de Portugal, D. João III, nomeia Mem de Sá Governador Geral das Capitânias do Brasil (1558-72). Lutas encarniçadas foram então travadas e Villegaignon finalmente é expulso.
Diante disso, Mem de Sá retorna para Salvador, a capital da época, e passa o poder (governador da nova capitania) para seu sobrinho, Estácio de Sá, que em 1556 funda a Cidade do RJ – no mesmo istmo de terra que antes desembarcara Gaspar Lemos. Ou seja, as razões de segurança continuavam a predominar e não a intenção de criar uma verdadeira cidade.
Todavia, a relativa calmaria propiciada pela expulsão de Villegaignon, dadas as limitações do lugar, o istmo de terra da Urca (esse estreito lugar apenas veio a ser ampliado muitos anos depois por conta de importante aterramento), o levaram a deslocar a ‘infante’ cidade para o Morro do Castelo em 1567. Uma adição: esse morro foi demolido na reforma urbanística de 1922, quando já era reduto basicamente de gente ‘pobre’, dando lugar ao que veio a ser chamado de Esplanada do Castelo – área importante e ampla do centro do Rio.
Voltando à análise. O Rio de fato ‘nasce’ ali. Nele, notadamente em seu cume, ergueram-se igrejas, palácios, residências etc. Suas encostas, ademais, também permitiram edificações. Mas nesse lugar, escolhido mais uma vez por razões de segurança (vista privilegiada da circulação marítima da baía, posto não haver barreiras à sua frente), dentre outras limitações, havia o da água potável – ela era rara.
O fato é que as dificuldades eram tantas que em 1635 quase não se morava mais no Castelo. Não foi à toa a cidade ali estabelecida acabou se espraiando para outros três morros (São Bento, Santo Antônio e da Conceição) e suas cercanias. A realidade é que em meados do século XVII, em que pese o que veio de ser anotado em meados do século XVII, o centro do Rio não possuía mais que quatro ruas e elas mal alcançavam dois quilômetros de extensão. Em suma: o Rio era modesto mesmo quando comparado com outras cidades brasileiras mais assentadas daquele tempo histórico – vide Olinda e Salvador. Ou seja, a exígua vida urbana no entorno dessas ruas e sua estreita articulação com a zona portuária e o Paço Imperial (atual Praça XV), ambos a elas contíguas, apenas reforça o argumento sobre a modéstia espacial da jovem cidade.
Não obstante, nessa mesma metade de século (XVII) houve alguma expansão populacional nas cercanias do centro da cidade rumo à região da Tijuca, bem como no sentido do Catete, Flamengo e Botafogo. No entanto, vale o destaque, essa expansão não era urbana. Ela era marcada pela construção de chácaras e instalação de fazendas, muitas delas dedicadas à produção de açúcar e aguardente. Também é fato que a chegada de grande contingente de pessoas arrancadas da África na condição de escravos adensou esse mesmo entorno rural. Nesses termos, essas transformações pouco contribuíram para a expansão do centro urbano carioca e a ampliação da sua população – pelo menos até o final do século XVIII.
Também vale observar que nem as novas invasões francesas, de 1710 e 1711, geraram maiores ações da Coroa Portuguesa sobre a cidade – o sul do país, com a presença espanhola, a ela preocupava mais. A posterior transformação do Rio em capital imperial (1773), com o intuito da centralização do poder nessa cidade, de prático também pouco resultou naquele momento em termos de expansão espacial e populacional.
O próprio apogeu do ciclo da mineração no último quartel do século XVIII, dado o fechamento das vias de escoamento do ouro, centralizando-se tudo no Rio (nesse sentido o ciclo em questão foi muito importante), igualmente pouco contribuiu para a aludida expansão, posto que esse processo ao tempo que reforçava a centralidade do Rio (através do comércio e do escoamento dessa produção para Portugal) lhe subtraía gente atraída por aquele eldorado. Em resumo: a reiterada expansão em todo o século XVII, assim como nos anteriores, continuou incipiente.
O Rio do futuro surge mais apropriadamente no século XIX. A população carioca, por exemplo, salta de 137 mil em 1832 para pouco mais de um milhão de pessoas em 1920 (conforme a pesquisadora francesa Enders, A história do Rio de Janeiro, Editora Gryphus, de 2015). A chegada da família real em 1808, incluindo o séquito que com ela aportou no Rio, foi decisiva.
Na composição desse quadro, anote-se: a construção de residências da nascente burguesia agrária açucareira no entorno da residência oficial de D. João VI no centro do Rio; a construção de palácios e de obras públicas (luz, água e esgoto); a abertura de novas artérias, como a famosa rua do Ouvidor (a primeira via perpendicular à baía), que substituiu o prestígio antes concentrado na rua Direita, a atual Primeiro de Março; a inauguração da ligação por barco entre o Largo do Paço e Botafogo; o deslocamento de parte da elite carioca para os bairros do Catete e Botafogo; a inauguração de algumas fábricas e oficinas na área de São Cristóvão (sabonetes, velas e tecelagens); a inauguração de trilhos de bondes puxados por tração animal, que expande a cidade para Glória, Lagoa etc. Em complemento crucial, vale considerar na composição desse quadro o papel das ferrovias então inauguradas que interiorizaram – leia-se, suburbanizaram – marcadamente o Rio…
Pela primeira vez, enfim, a cidade se distancia do seu centro histórico (zona portuária, rua Direita e dos morros já referidos). Há de se adicionar que na segunda metade do século XIX, além do relativo dinamismo da economia carioca, graças de início ao açúcar e depois sobretudo ao café, ocorre notável expansão cafeeira-industrial em São Paulo no último quartel desse mesmo século, com positivos rebatimentos sobre a economia do RJ. Explicando: isso assim aconteceu, destacadamente, graça aos seguintes fatos: o porto mais importante, o grande centro comercial e a principal praça financeira do país estavam então sediados no Rio.
De outro modo: novas atividades econômicas e maior afluxo populacional. Em que pese esses avanços, os imperadores, especialmente Pedro II, não deram verdadeira atenção ao Rio. Suas viagens internacionais, refúgios recorrentes e extensos em Petrópolis (talvez não seja para menos, afinal o RJ era um lugar extremamente pestilento – e mais ainda no verão) e suas motivações pessoais e intelectuais seriam exemplos dessa desatenção.
Para Carlos Lessa, notório e extraordinário estudioso das coisas do Rio, a cidade passa a merecer cuidado do governo local/nacional pra valer apenas na República Velha. Para esse autor, muito além da abertura de um túnel que veio a ligar Botafogo e Copacabana (1892), de um novo túnel, o Novo, em 1906 etc., foram as monumentais obras de reurbanização do centro carioca (Pereira Passos) – apesar dos pesares – e os esforços vacinais (Oswaldo Cruz) que tornaram o Rio, para brasileiros e estrangeiros, signo de modernização e terra prometida (…).
Seria nesse contexto, de afirmação da capitalidade carioca e de expansão econômica (conquanto ‘a menor’ em relação a São Paulo), que foram multiplicadas a população e as manchas urbanas do RJ. Para esse autor, embora o centro tenha continuado a ser o lugar por excelência de ligação da cidade (e continua sendo), essa cidade passou definitivamente a existir a partir dali em vários outros lugares, tais como na zona sul e norte, bem como nos bairros dos ramais da Estrada de Ferro Central do Brasil (antiga Pedro II) e Leopoldina.
Desde então, e até quase o final do século XIX, o Rio não parou de expandir sua população. Em seu conjunto, o problema do baixo dinamismo econômico do Nordeste e Norte brasileiros, o drama da seca recorrente e extrema que atingia essas regiões, a pujança da região Sudeste (incluindo o próprio Rio) e a capitalidade carioca, dentre outros aspectos, contribuíram decisivamente para o crescimento da população e do seu perímetro urbano.
Mais adiante, a partir do final do último século, houve extraordinário avanço populacional/espacial sobre a Baixada de Jacarepaguá, que passou a capturar importantes investimentos e negócios. Foi assim que surgiu uma nova área residencial, comercial e de serviços na cidade, a da Barra da Tijuca, e posteriormente (no tempo) e em relação à tradicional zona sul a do Recreio de Bandeirantes. Atualmente, como se sabe, raros são os espaços cariocas não-edificados e sua população alcança a marca expressiva de cerca de 6,748 milhões (dados de 2020).
Do exposto, resulta que o Rio do istmo da Urca em nada se assemelha à cidade disseminada por praticamente todos os seus domínios e que não há como comparar a limitada população portuguesa daquela época, a que ali se instalou por dois a três anos, com os referidos 6,748 milhões de habitantes dos dias correntes.
Logo, do ponto de vista populacional e espacial o Rio contemporâneo é uma longa construção; uma construção que, entretanto, apenas deu saltos decisivos no século XIX e, em particular, no XX. Em termos estritamente populacional, por exemplo, parece inexorável considerar nos tempos presentes para fins analíticos e da formulação de diversas políticas públicas não os assinalados 6,748 milhões de habitantes, mas sim os aproximados 13,132 milhões (dados de 2020), tamanha a conurbação, como dizem os geógrafos, produzida desde meados do século passado.
Ou seja, o Rio do istmo da Urca cruzou seus limites territoriais e constituiu a atual região metropolitana (com seus atuais 22 municípios). Também no plano da apreciação mais geral do Rio de Janeiro se observa que seu crescimento e adensamento populacional, tal e qual o referido espraiamento espacial, geraram enormes diferenciações (a esse respeito vide o temário da segregação, expressão materializada no território da estratificação classial brasileira), o que reforça a tese de que o espaço é sempre uma produção historicamente determinada.
Somente desse modo, em suma, é possível avançar no questionamento de por que há, por exemplo: tantas favelas e tantos condomínios fechados de elevado poder aquisitivo por vezes até mesmo contíguos; tantos bairros à margem da adequada oferta de serviços públicos e outros bem assistidos; e, tanta gente gastando quatro ou cinco horas por dia em deslocamento casa-trabalho-casa (nessa cidade tão expandida, mas ainda – como apontado – marcadamente nucleada pelo centro do Rio). E tudo, assim entendemos, mostra-se ininteligível sem a devida consideração do temário desenvolvimento econômico – esse tema será examinado em um futuro artigo.