“O senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”, assim escreveu J. A. Antonil, no seu livro publicado em 1711, em Lisboa. Mas poucas obras escritas são mais esclarecedoras para a compreensão do nosso país do que “O Abolicionismo”, de Joaquim Nabuco. Nesse livro, publicado pela primeira vez em 1883 e desde o nascimento um clássico do pensamento brasileiro, Nabuco identifica a herança escravista como o elemento degenerador de nossa formação social. A incapacidade de formação de um mercado interno forte que impulsionasse as atividades industriais e o desprestígio do trabalho, visto como um estigma da condição servil, estariam entre seus efeitos.

Parece acertada, sob muitos aspectos, a interpretação proposta por nosso eminente intelectual e homem público. Poderíamos ainda acrescentar aos traços hereditários por ele apontados a insensibilidade perante a miséria desumana, expressão afetiva do não reconhecimento do outro como semelhante.

De fato, construímos a partir do sistema econômico escravocrata uma sociedade alicerçada nos conceitos de senhores e servos. O país ficou marcado por uma profunda desigualdade social. A hierarquização da sociedade brasileira é um elemento que permeia, de forma determinante, todas as suas estruturas jurídicas, políticas, administrativas e ideológicas. Associados aos diferentes níveis da hierarquia de classes criaram-se diferentes graus de cidadania, desde os mais altos, apenas formalmente sujeitos à ordem jurídica vigente, mas que detêm, na prática, privilégios de isenção legal, aos mais baixos, caracterizados pela mais absoluta nulificação.

Essa polarização entre os extremos da onipotência e da nulidade, característica da nossa formação histórica, coloca diante de nós um problema fundamental: qual o papel político e social reservado às nossas classes médias? Na verdade, o contraste radical entre essas condições sociais tão opostas parece ter reduzido os anseios psicológicos de nossos segmentos intermediários a duas diretrizes complementares: a identificação com a classe dominante, pela assimilação de sua ideologia elitista, e o esforço desesperado de diferenciação em relação aos setores socialmente desfavorecidos.

Na nossa psicologia, determinada por uma genética escravista, o pesadelo ancestral das classes médias é o de serem lançadas na senzala, na confusão de distinções apenas sutis. A veemência de seu discurso preconceituoso cumpre, nesse cenário, a função de acentuar diferenças, que, no íntimo, temem que não sejam suficientemente evidentes. Assombradas pelo fantasma dessa condição ignominiosa, não rejeitam o enquadramento social injusto; apenas pleiteiam melhor sorte dentro dele. Antes, pelo contrário, empenham-se na conservação da injustiça, como forma de garantir a continuidade de uma miséria que enfatize, por contraste, quão distantes estão da degradação social. Sua solidariedade política se dirige às elites e a seus valores, que cultivam, na busca de aceitação.

Essa parece ser a psicologia de parcelas inteiras.

Outro, entretanto, deveria ser o encaminhamento.

Não se afasta o mal aceitando suas regras!

O indivíduo não percebe, que ao desmontar a senzala tardia, se dissipariam simultaneamente seus temores atávicos? Que a democratização, eliminando o caráter acentuadamente classista de suas instituições, é um passo essencial para a superação de tensões indesejáveis que são um legado de nossa história?

Eis o desafio político: a desconstrução de nossa herança e a transformação de nossa sociedade, modificando suas bases perversas; substituir a opção conservadora pela opção democratizante.