A substituição do Programa Bolsa Família por um novo programa social era promessa antiga de Bolsonaro que se concretizou recentemente com a instituição do Programa Auxílio Brasil. Muitas camadas podem ser avaliadas nessa substituição.

Primeiramente, é importante considerar as eleições presidenciais em 2022. Lula, principal adversário político de Bolsonaro e à frente das atuais pesquisas de intenção de voto, é o pai do Bolsa Família. O programa foi instituído no final de 2003 a partir da junção de diversos outros programas sociais então em vigor (Bolsa-Escola, Auxílio-Gás, etc.), gerando uma única estrutura de benefícios, cujo acesso passou a ser condicionado à inscrição de famílias no Cadastro Único do Governo Federal.

Em janeiro de 2004, o Bolsa Família já atendia 3,6 milhões de famílias. Dois anos depois, sua cobertura alcançava mais de 11 milhões de famílias em situação de pobreza e pobreza extrema. No início de 2020, pouco antes da eclosão da pandemia, 13,2 milhões de famílias (cerca de 50 milhões de pessoas) eram beneficiadas com um valor médio de R$ 191 por família. Não à toa, o Bolsa Família é considerado um dos principais legados e bandeira política de Lula.

Entretanto, não foram poucas as incertezas e ameaças de extinção do programa ao longo dos seus quase 20 anos de vigência. O fato de o acesso a um programa dessa magnitude não ser um direito para quem cumpre os requisitos de elegibilidade, tal como ocorre com o Benefício de Prestação Continuada – BPC, é uma enorme fragilidade institucional exposta a cada discussão orçamentária ou troca de governo.

Nem nos governos Lula e Dilma, ou com a aprovação da Lei 10.835 em 2004 que instituiu a renda básica de cidadania (a partir do Projeto de Lei de autoria do então senador Eduardo Suplicy, expoente na defesa dessa causa), essa discussão avançou. Ouso dizer que o que segurou o programa até hoje foi o enorme contingente de pessoas atendidas, tornando difícil alguém assumir o ônus político de sua extinção. Até hoje.

Para além de querer dissociar a imagem de Lula da principal política social do governo federal, Bolsonaro também tenta surfar no relativo sucesso do Auxílio Emergencial concedido ao longo de 2020 para mitigar os efeitos econômicos da pandemia. Um sucesso que nem lhe pertence. A proposta inicial do governo era um benefício de R$ 200 que, a partir da forte atuação dos partidos de oposição e pressão da sociedade civil, se reverteu em um benefício básico de R$ 600, podendo chegar a R$ 1200 por família (com até dois trabalhadores beneficiários ou no caso de mãe responsável pela família sem cônjuge). Além das famílias já beneficiárias do Bolsa Família, o programa também contemplou trabalhadores informais de baixa renda. No artigo “Auxílio Brasil com fins eleitorais põe em xeque o combate à pobreza no país” aqui no blog, apontei alguns dos resultados positivos em termos de redução da desigualdade e da pobreza no período, graças a essa concessão.

Com o Auxílio Emergencial, a primeira transição entre os programas foi estabelecida. A pá de cal veio com o crescente declínio da popularidade de Bolsonaro em função do aprofundamento da crise econômica e da redução dos valores do Auxílio Emergencial já em fins de 2020 para a metade dos valores iniciais, sem a implementação de políticas efetivas de recuperação da atividade econômica que permitissem que as pessoas voltassem a ter renda do trabalho. Isso tudo associado a uma caótica gestão da crise sanitária e negociação de vacinas.

Uma das primeiras medidas, ainda no apagar das luzes de vigência do Bolsa Família, foi aumentar as linhas de elegibilidade (linhas de pobreza que servem de limite para acesso aos programas) praticadas desde julho de 2018. Passam agora a ser consideradas pobres para fins de recebimento dos benefícios do novo programa as pessoas que vivem com rendimento familiar per capita inferior a R$ 200 (era R$ 178) e extremamente pobres aquelas que vivem com menos de R$ 100 per capita (R$ 89 anteriormente). Um aumento de 12,4% em um período em que o INPC acumulado foi de 21,5%.

O novo programa, assim como seu antecessor, não estabeleceu regras de reajuste das linhas e benefícios, problema que se torna crítico em um contexto como o atual de inflação acelerada e consequente perda de poder aquisitivo dos mais pobres sem acesso a proteções financeiras. De acordo com Bartholo et al (2021) , “linhas de pobreza menores geram menores filas – uma linha de pobreza defasada é sempre uma maneira de o poder público fechar os olhos para a pobreza real”. Assim, é possível diminuir a demanda e os custos com o programa, mesmo que às custas da miséria e da fome de muitos.

Na estrutura de pagamentos do finado Bolsa Família, constavam quatro tipos de benefícios. O “Benefício Variável” no valor de R$ 41 era pago às famílias com crianças até 15 anos, gestantes e/ou nutrizes no limite de até cinco benefícios por família (ou seja, no máximo R$ 205 por família). Para famílias com adolescentes de 16 e 17 anos era pago o “Benefício Variável Jovem”, no limite de dois benefícios por família e com valor unitário de R$ 48 (máximo de R$ 96). O programa também pagava às famílias extremamente pobres, mesmo aquelas sem crianças, adolescentes, jovens, gestantes ou nutrizes, um “Benefício Básico” de R$ 89. No total, uma família (numerosa) extremamente pobre poderia acumular até sete benefícios variáveis e um básico. Se mesmo com esses benefícios a renda permanecesse abaixo de R$ 89 per capita, era concedido o “Benefício para Superação da Extrema Pobreza na Primeira Infância” com valor variável correspondente ao necessário para que a família superasse esse limite.

A proposta inicial do Auxílio Brasil rearranja essa estrutura com novos nomes, mais restrições e outros valores. O “Benefício de Primeira Infância” no valor de R$ 130 é destinado às famílias que possuam em sua composição crianças com idade entre 0 e 36 meses incompletos. O “Benefício Composição Familiar” no valor de R$ 65 é pago às famílias com gestantes ou pessoas com idade entre 3 e 21 anos incompletos. No total, cada família poderá receber um máximo de cinco benefícios entre essas duas categorias.

Ficou mantido o “Benefício para Superação da Extrema Pobreza” para aqueles que ainda permanecerem nessa situação após o recebimento dos dois primeiros benefícios e foi instituído um “Benefício Compensatório de Transição” para famílias que tiverem redução no valor financeiro total em relação ao que recebiam no Bolsa Família. As condicionalidades para recebimento também foram mantidas: frequência escolar (pessoas entre 4 a 21 anos), vacinação e acompanhamento nutricional de crianças e pré-natal das gestantes. A principal alteração na estrutura vem da exclusão do “Benefício Básico”, que retira do público-alvo do programa as famílias sem filhos, gestantes ou nutrizes.

Como se não bastasse todo o imbróglio de aprovação do novo programa ainda em tramitação nas casas legislativas e sem orçamento definido, outros pontos presentes na proposta inicial do Auxílio Brasil chamam a atenção. Em diversos trechos, observa-se a ideia da privatização do acesso ao básico, da meritocracia e da financeirização (inclusive autorizando a concessão de empréstimos consignados sobre o valor dos benefícios). O programa se torna uma colcha de retalhos, com objetivos mistos, cuja avaliação de resultados, eficácia e efetividade serão de complexa realização.

Tem de tudo no cardápio “incentivo ao esforço individual e emancipação”: “Auxílio Esporte Escola” para estudantes que se destacarem em competições oficiais dos jogos escolares brasileiros; “Bolsa de Iniciação Científica” para estudantes com bom desempenho em competições acadêmicas e científicas; “Auxílio Inclusão Produtiva Rural” para incentivo à produção, doação (!) e consumo de alimentos saudáveis pelos agricultores familiares beneficiários; e “Auxílio Inclusão Produtiva Urbana” para trabalhadores pobres com vínculo de emprego formal.

Até o voucher para pagamento de creches privadas que andava meio esquecido teve seu lugar garantido. O chamado “Auxílio Criança Cidadã” será de R$ 200,00, para as famílias que tenham crianças matriculadas em turno parcial e de R$ 300,00 no caso de turno integral. Cabe ressaltar que o Plano Nacional de Educação tem como meta ampliar o acesso a creches e atender a, pelo menos, 50% das crianças de zero a três anos até 2024 (atualmente cerca de 1/3 das crianças nessa faixa etária frequentam creches). Dessa forma, empurra-se para o setor privado o cumprimento dessa meta.

Quem assistiu a série “Maid”, disponível na plataforma Netflix, acompanhou a via-crúcis da protagonista para acessar os benefícios de assistência social nos Estados Unidos. Esse tormento aparece em outros filmes excelentes como Coringa, Preciosa e Eu, Daniel Blake. Prevalece aqui a ideologia liberal de que para receber assistência social o pobre tem que fazer por merecer, trabalhar em qualquer emprego que é oferecido, não importando o nível de precariedade e exploração. A burocracia é humilhante, os beneficiários são estigmatizados e boa parte dos benefícios são em forma de “vouchers” que precisam ser complementados com renda dos beneficiários para pagar serviços privados de qualidade duvidosa e, assim, acessar moradia, creches e atendimento médico.

Werneck Viana já alertava em sua tese de 1998 sobre a “americanização (perversa) da seguridade social brasileira”. Difícil sair do rolo compressor de pobreza e violências. Se você for bonitinha-branca-padrão como a protagonista de “Maid”, tiver sorte de encontrar “boas almas” e, claro, correr atrás, limpar muita privada e se endividar para o resto da vida, você poderá ter alguma chance.

Nossa sociedade está permitindo que as pessoas, em determinados grupos mais que em outros, precisem passar por verdadeiras provações para ter acesso a direitos sociais previstos constitucionalmente, muitos deles reconhecidos como direitos humanos. A maioria dessas pessoas é vítima das consequências de um modo de produção e do desenvolvimento econômico que, para prosperar, precisa esmagar e excluir muitos para proveito de poucos.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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