Nos dias de hoje, dá para ver claramente que as big techs estão no comando nos EUA. Trata-se de uma nova ordem mundial que espelha uma aliança de gigantes da tecnologia com autocratas populistas operando na base da força bruta. Encabeçando essa lista figura Donald Trump, líder maquiavélico e implacável cortejado por oligarcas bilionários da tecnologia, cuja lógica é a manipulação através do caos digital, marca registrada dos poderes dominantes.

Os campos de batalha do nosso século XXI se caracterizam pela inteligência artificial, ciberataques, manipulação de dados e guerra de narrativas. O antigo equilíbrio geopolítico cede espaço para a chantagem e o atropelo, em detrimento do diálogo, negociação e diplomacia. O conhecimento estruturado perde espaço; predominam as ações em ambiente caótico que exigem ousadia para influenciar os oponentes, o que cativa a atenção do público incauto.

Basta olhar para as instituições multilaterais como ONU, BIRD, BID, OEA, OMC e tantas outras, tão importantes no passado e presentemente muito esvaziadas e sem voz ativa.

Donald Trump, diferentemente dos políticos europeus, governa os EUA com um círculo de familiares e autocratas. Aqueles, ao seu redor, acham perfeitamente natural recorrer a um parente ou parceiro de negócios do presidente para obter tratamento preferencial. O que conta é o resultado. No fundo, predomina uma submissão cultural de velhas elites políticas aos magnatas digitais.

O capitalismo tradicional está com os dias contados já que mercado e lucro estão dando lugar às rendas geradas pelos aplicativos digitais. O capital físico, a infraestrutura econômica, continuam existindo, mas viraram vassala do “capital da nuvem”, composto pelas Big Techs e Big Finance, grandes parasitas das sociedades. Enquanto as indústrias e os serviços pagam impostos e lucram quando muito 15% de suas receitas, as parasitas têm um retorno nunca inferior a 80% de sua renda. Os consumidores terminam se submetendo às redes em troca de uma falsa sensação de liberdade e privacidade. Os impulsos eleitorais e de consumo são manipulados. O e-commerce ganha espaço, substitui os mecanismos do mercado tradicional e satisfaz o capital da nuvem e os rentistas que participam do poderio do capital financeiro nessa nova era de riqueza estéril. A renda aos poucos vai tomando o lugar do lucro, mas ambos exercem uma vigilância totalitária. E os colonizadores das mentes não são nem adequadamente regulados nem tampouco taxados.

Para o professor da PUC – SP, Ladislau Dowbor, em “A era do capital improdutivo”, urge a valorização da sustentabilidade socioambiental, o combate à especulação e à evasão fiscal em prol do fomento econômico, do estímulo às agências financeiras locais e da transparência nos fluxos da Big Finance. A equação “99% da população vs 1% de sanguessugas” expõe a polarização do neoliberalismo.

Como diz Giuliano Da Empoli em seu livro, “A era dos predadores”, a institucionalidade e a diplomacia perderam valor, e os embates são levados às suas consequências extremas, num mundo sem limites.

Esse estado de coisas caracteriza bem a guerra tarifária propugnada por Trump que assolou os quatro cantos do planeta. A estratégia é desmantelar o status quo da globalização.

Nos últimos 80 anos, a economia global prosperou sobre uma base de abertura e multilateralismo sob a liderança dos EUA. Nasceu um sistema internacional baseado em regras e na utilização do dólar como moeda de reserva mundial, o que proporcionou o florescimento do comércio e a expansão do mercado financeiro internacional, algo extremamente benéfico para a Europa. Contudo, a cooperação multilateral começou a ser substituída pelo pensamento de soma zero e por jogos de poder bilaterais. A abertura econômica está dando lugar ao protecionismo, causando incertezas sobre a continuidade ou não do papel dominante do dólar norte-americano.

A economia europeia, como tantas outras, está profundamente integrada ao sistema de comércio global, com as exportações representando cerca de um quinto de sua produção, além de 30 milhões de empregos. Qualquer mudança na ordem internacional que leve à redução do comércio mundial ou à fragmentação da economia causará sérios danos para a comunidade europeia. Um aspecto positivo seria o aumento do papel internacional do euro que atualmente compõe cerca de 20% das reservas cambiais contra 58% no caso do dólar americano. Permitiria que governos e empresas da UE tomassem empréstimos a um custo menor, impulsionando a demanda doméstica e equilibrando as perdas no fluxo de exportações. Amenizaria flutuações da taxa de câmbio, já que mais comércio seria denominado em euros, protegendo a Europa de fluxos de capital mais voláteis. Protegeria a Europa de sanções ou outras medidas coercitivas, permitindo à comunidade europeia um maior controle do seu próprio destino.

Como é sabido, no passado, o dólar sofreu diversos revezes e só não deixou de continuar sendo a moeda de reserva internacional porque nessas ocasiões não havia nenhuma outra moeda robusta alternativa capaz de substituí-lo, o que não é o caso atual. Em 1933 foi suspensa a convertibilidade do dólar em ouro e adotadas taxas de câmbio flutuantes para combater a depressão. Em 1971 foi novamente suspensa a convertibilidade do dólar em ouro e impostas tarifas de 10% sobre o resto do mundo. Em ambos os casos, o volume de reservas em dólares caiu substancialmente e os investidores se resguardaram comprando ouro.

Nos últimos anos, a participação do dólar nas reservas cambiais globais caiu, com seu nível atual de 58% sendo o mais baixo desde 1994. Paralelamente, os bancos centrais vêm acumulando ouro em um ritmo recorde – quase igualando os níveis observados durante a era de Bretton Woods. A participação do ouro nas reservas cambiais globais atingiu cerca de 20%, superando a do euro.

A Europa conta com os ingredientes chave para oferecer uma moeda alternativa ao dólar, senão vejamos:

– base geopolítica confiável com sólidas alianças militares e compromisso firme com a continuidade do comércio aberto e multilateral. Já detém a maior network de acordos comerciais do planeta comerciando com 72 países (40% do PIB do mundo).

– dispõe de sólida base econômica e fiscal (Dívida/PIB da ordem de 89% contra 124% dos EUA) capaz de permitir o ciclo virtuoso entre crescimento, mercado de capitais e utilização de moeda internacional confiável. Crescimento gera taxas atrativas de retorno em ativos denominados em moeda confiável e destino seguro para os capitais internacionais.

– conta com sólida base jurídica compartilhada por 27 países com reduzida possibilidade de interferência e ameaças às regras e políticas do Banco Central Único e às normas jurídicas da Comunidade.

Nas palavras do economista Robert Triffin, “a confiança dos agentes no sistema monetário internacional depende da credibilidade da moeda de reserva monetária, que é substancialmente afetada pelas decisões políticas e econômicas dos países.”

Não é muito difícil de perceber a enorme perda de confiança que vem acontecendo no mundo inteiro em relação aos EUA, à sua moeda e a seus ativos. Basta ver o salto da compra de ouro que já atinge a marca de 20% das reservas mundiais e a fuga dos treasuries por parte de grandes investidores (Japão, China, etc.).

Grandes mudanças trazem oportunidades. E, no momento atual, configuram-se claramente dois momentos: o momento do euro e o momento do yuan.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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