Tarde de domingo. Isolados em nossa casa de campo, resolvemos ir à piscina do condomínio. Quando não é feriado, ela fica vazia e permite a meu filhote de dois anos ter o que não se pode em outros locais: algumas horas de uma vida normal durante a pandemia. Mas esse dia foi um pouco diferente. Uma senhora que não conhecíamos se aproximou e, vendo a felicidade de mãe e filho, caiu a chorar. Ela nos contou então que sua filha, mãe de um menino da idade do nosso, estava no sexto mês de sua segunda gestação, quando foi infectada pelo coronavírus e acabou falecendo de suas complicações, assim como seu bebê. Ela se desculpou muito pelo choro e nos disse que estava feliz em ver mãe e filho brincando na piscina, mas que não entendia bem por que a sua filha não poderia estar ali também, feliz, com seus dois bebês.

Simultaneamente e de maneira totalmente independente, minha filha, que está no Acre, me ligou feliz informando que os índios Shanenawas, pelos quais ela tem especial apreço, finalmente haviam sido vacinados. O SUS fez seu trabalho brilhantemente, no caso, com palestras para espantar o fantasma criado neles pelas fake news sobre as vacinas. Acontece que, ao final da conversa, ela me contou também que “somente as mulheres grávidas e lactantes não foram vacinadas”. Ela terminou dizendo que se preocupava com isso, pois o número de mulheres grávidas ou que estavam amamentando era relativamente alto entre as índias.

Esses eventos me empurraram de volta à literatura sobre os impactos do coronavírus em gestantes, coisa que já havia feito em meados de 2020. Na época, por já ter escrito sobre a Covid-19 como divulgador científico, por ter um filho novo e por conviver com uma mulher engajada na batalha pelo parto humanizado no Brasil, acabei me interessando pela questão. Naquele momento, o pouquíssimo conhecimento existente não indicava qualquer impacto diferenciado sobre mulheres grávidas. Hoje, ao revisitar o assunto, isso mudou.

Em um dos últimos estudos, publicado em 26 de janeiro de 2021 na “American Journal of Obstetrics and Gynecology” (1), os resultados indicaram que, após serem infectadas pelo coronavírus, quando comparadas às demais mulheres da mesma idade, as gestantes têm cerca de 3,5 vezes mais chances de desenvolverem sintomas graves, de serem hospitalizadas, de precisarem de cuidados intensivos após internadas (ventilação) e de morrerem (cerca de 14 vezes mais) (2). As mortes acontecem durante a gestação ou até duas semanas após o parto, sendo a contaminação no terceiro trimestre da gestação mais problemática do que nos dois primeiros. Além disso, a infecção pelo vírus aumenta em até 12 vezes as chances de gestantes terem partos prematuros, aparentemente em decorrência da febre e da hipoxemia características da Covid-19. Mesmo sob esse risco, gestantes não vêm sendo vacinadas. Isso se dá em decorrência de protocolos éticos ligados à falta de conhecimento sobre eventuais impactos das vacinas na gravidez.

A origem do problema está na ausência de gestantes e lactantes nas fases 1 e 2 do desenvolvimento das vacinas. Desde que se percebeu, entre as décadas de 50 e 70 o impacto do uso de remédios mal testados sobre o desenvolvimento de fetos (e.g. talidomida), a U.S. Food and Drugs Administration (FDA) excluiu esses grupos dessas primeiras etapas de teste de medicamentos. Essa medida, cuja única intenção é a proteção dessas mulheres, pode se voltar contra elas em determinadas circunstâncias. Isso aconteceu, por exemplo, no desenvolvimento da vacina contra o Ebola, no Congo. Lá, as gestantes foram inicialmente excluídas dos programas de imunização, o que em muitos casos representava morte certa dada a letalidade de até 90% da doença.

A questão é ética. Podemos ministrar para grávidas uma vacina que não foi testada nelas? Qual o possível impacto disso? Qual o impacto de não fazê-lo? Quem assumirá a responsabilidade pela vacinação em massa de um grupo tão importante sem que haja testes específicos antes?

Nesse sentido, ao contrário do que acontece fora do país, onde a questão do acesso de gestantes e lactantes às vacinas é considerado um tema emergencial e bastante debatido por diversos segmentos da sociedade, no Brasil, uma atenção claramente insuficiente vem sendo dada à questão. Os documentos específicos e as políticas públicas brasileiras no que concerne à vacinação de gestantes contra a Covid-19 não são facilmente rastreáveis e, além disso, muitos, senão todos os documentos disponíveis encontram-se desatualizados.

Esse é o caso do “Guia de Orientação para Gestantes e Puérperas sobre o Novo Coronavírus” feito em abril de 2020 pelo governo do estado do Rio de Janeiro em consórcio com o Ministério da Saúde, no qual se afirma, equivocadamente, que: “As pesquisas sobre os efeitos da Covid-19 em gestantes, parturientes e puérperas apontam que as consequências dessa doença não são diferentes das observadas na população em geral”. Embora esteja de acordo com o conhecimento da época de sua redação, a permanência do documento no site do governo, atualmente, trabalha contra a prevenção da doença por omitir o já sabido risco diferenciado sobre as grávidas.

No “Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19”, apresentado pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2020, igualmente desatualizado, as gestantes aparecem somente no item “Contraindicações”, enquanto que nas orientações sobre a vacinação passadas para estados e o Distrito Federal em 26 de janeiro de 2021, informa-se que: “A segurança e eficácia das vacinas não foram avaliadas nos grupos de gestantes, puérperas e lactantes. Para as mulheres pertencentes a um dos grupos prioritários, que se apresentem nestas condições, a vacinação poderá ser realizada após avaliação cautelosa dos riscos e benefícios e com decisão compartilhada entre a mulher e o médico prescritor.”

Essas últimas diretrizes já são similares àquelas de países europeus e dos Estados Unidos, embora menos claras e mais conservadoras. Isso pode ser constatado, por exemplo, nas orientações dos Centers for Disease Control and Prevention (EUA), publicadas em 12 de fevereiro de 2021 e no Public Health England (Reino Unido), publicadas em 28 de janeiro de 2021.

No caso do Reino Unido, por exemplo, eles deixam claro que “se uma vacina contra a Covid-19 é oferecida a uma gestante, ela deve ser informada que a vacina não contém o vírus SARS-CoV-2 vivo e que, portanto, não pode provocar a doença Covid-19 nela ou em seu bebê. Algumas vacinas para a Covid-19 contêm um vírus menos agressivo [adenovírus, o vírus que provoca resfriados em chimpanzés], para ajudar no processo de entrega da vacina – apesar do vírus estar vivo, ele não pode se reproduzir e, portanto, não causa a infecção nem na mãe nem no bebê” (3). Em suma, o que eles querem dizer é que se a gestante acredita que sofre risco de contrair a Covid-19, deve-se oferecer a vacina a ela e que, apesar de não testada, nada indica que a vacina ofereça risco maior que a doença em si.

Ainda no Reino Unido, quando o assunto são as lactantes, as recomendações são muito contundentes sobre a importância dessas se vacinarem: “Não há dados sobre a segurança das vacinas para a Covid-19 sobre mães lactantes ou sobre bebês em amamentação. Apesar disso, as vacinas contra a Covid-19 não são consideradas arriscadas para lactantes e bebês em estágio de amamentação, ao passo que os benefícios da amamentação são muito bem conhecidos. Por causa disso, o JCVI [Joint Committee on Vaccination and Immunisation] tem assumido que a vacina deva ser oferecida também durante a amamentação. Isto está em linha com as recomendações dos EUA e as da Organização Mundial da Saúde” (4). Ao que tudo indica, lactantes podem ser vacinadas e não devem sequer interromper a amamentação, dada a importância desta para a própria saúde do bebê. Mais que isso, segundo especialistas, além de não haver qualquer evidência de que os componentes da vacina cheguem ao leite materno, tudo indica que a imunidade desenvolvida pela mãe, essa sim, seja passada pelo leite para o bebê. Então, não haveria a necessidade de lactantes adiarem a vacinação ou, muito menos, de promoverem o desmame da criança de maneira precoce.

Em suma, toda a bibliografia consultada, inclusive aquela que se baseia em testes com animais, converge exatamente no ponto em que não há qualquer evidência de que as vacinas seriam nocivas a mulheres grávidas ou lactantes. Anthony Fauci, o imunologista e médico conselheiro da Casa Branca, anunciou agora no começo de fevereiro que isso foi corroborado pelo acompanhamento de 10 mil americanas grávidas vacinadas (foram vacinadas porque estão no fronte de batalha ou por não saberem que estavam grávidas quando tomaram a vacina). Segundo ele, não houve qualquer evidência de perigo (“sem bandeiras vermelhas”). Essa “ausência” de risco se reflete no fato de todas as entidades, inclusive as brasileiras (como a Febrasgo, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), terem recomendado a vacinação de grávidas mediante discussões com seu médico pessoal para a ponderação consciente de prós e contras.

Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido recomendam também que as mulheres grávidas que se sintam vulneráveis ao vírus pela superexposição ou por pertencerem a algum outro grupo de risco (pressão, obesidade, etc.) sejam apropriadamente informadas para que decidam sobre se tomam ou não a vacina.

Enquanto não tivermos testes cientificamente robustos do ponto de vista metodológico que certifiquem a segurança de vacinas (as grandes empresas farmacêuticas estão se movendo nesse sentido), a gestantes e lactantes deve ser oferecido então o pacote que inclui informação e a vacina, particularmente no caso das mulheres estarem em risco. Embora isso já venha acontecendo, especificamente para gestantes que atuam na área médica, a prática deveria ser expandida para demais gestantes dado o crescimento das taxas de contaminação. Alternativas criativas como a encontrada na Alemanha, onde as pessoas ao redor das gestantes foram incluídas no segundo grupo prioritário para a vacinação, também são bem-vindas. Essa estratégia promove uma imunização indireta de grávidas.

Por fim, parece claro que não nos cabe especular se em um cenário em que houvesse mais cuidado, atenção e informação, vidas como as referidas no primeiro parágrafo (mãe e bebê) teriam ou não sido poupadas. Também não vale a pena discutir se aquelas índias grávidas e lactantes que não foram vacinadas optariam por sê-lo, caso tivessem sido apropriadamente informadas sobre os prós e contras. Cabe, sim, garantir que no Brasil estagnação e apatia cedam lugar a uma ativa campanha de informação. Grávidas e pessoas que as circundam devem ser informadas claramente sobre os riscos que essas ainda correrão até que, finalmente, tenhamos no Brasil vacina para todos. Da mesma forma, lactantes devem ser claramente informadas sobre os benefícios da vacinação.

A decisão da vacinação desses grupos de mulheres deve ser colocada, assim, nas mãos delas, sejam elas indígenas (que não vêm sendo vacinadas), da linha de frente do combate ao vírus (como no caso do pessoal da área da saúde), portadoras de comorbidades associadas à gravidez ou, simplesmente, caso se sintam demasiadamente expostas (como no caso de professoras). Claro, para que a decisão individual de tomar ou não a vacina represente um real empoderamento desses grupos, ela deve ser tomada mediante muita conversa e informação, coisa ainda distante de acontecer no Brasil.

Referências:
(1) Disease Severity, Pregnancy Outcomes and Maternal Deaths among Pregnant Patients with SARS-CoV-2 Infection in Washington State (ajog.org)
(2) É importante ressaltar que cerca de 80% das gestantes infectadas pelo vírus são totalmente assintomáticas. Além disso, há quem conteste os números. Embora em termos qualitativos os estudos recentes caminhem na mesma direção, há divergências em relação a aspectos quantitativos e estatísticos. Qualidade do Sistema de Saúde do país, classe social, presença de comorbidades e outros fatores têm influência e geram vieses nas análises, influenciando as diferenças encontradas entre gestantes e não gestantes. Para uma ampla revisão sobre o tema, veja “Coronavirus (COVID-19) Infection in Pregnancy” do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists.
(3) “If a COVID-19 vaccine is given to a pregnant woman, she should be reassured that the vaccine does not contain live SARS-CoV-2 virus and therefore cannot cause COVID-19 infection in her or in her baby. Some COVID-19 vaccines contain a different harmless virus to help deliver the vaccine – whilst this virus is live, it cannot reproduce and so will not cause infection in a pregnant woman or her baby”. Em The safety of COVID-19 vaccines when given in pregnancy – GOV.UK.
(4) “There are no data on the safety of COVID-19 vaccines in breastfeeding or on the breastfed infant. Despite this, COVID-19 vaccines are not thought to be a risk to the breastfeeding infant, and the benefits of breast-feeding are well known. Because of this, the JCVI has recommended that the vaccine can be received whilst breastfeeding. This is in line with recommendations in the USA and from the World Health Organisation…”. Ver Covid-19 Vaccination: a guide for all women …

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