A crise resultante da pandemia mundial provocada pelo novo coronavírus tem sido considerada o maior desafio à economia global desde o pós-Segunda Grande Guerra. Sabe-se que grandes danos serão inevitáveis. Assim, os esforços empreendidos em escala mundial têm se concentrado em salvar vidas e reduzir as perdas econômicas ao máximo. Após atingir de modo mais duro as economias avançadas da Europa e os EUA, a Covid-19 começa agora a se alastrar com maior vigor pelos países da América Latina e o Caribe, que passam então a ser considerados o novo hot spot mundial da pandemia.
Infelizmente, o Brasil tem se destacado no cenário latino-americano e caribenho pelo número velozmente crescente de infectados e mortos, tanto que foi usado recentemente como exemplo negativo por Donald Trump, a despeito de sua proximidade política com o presidente Bolsonaro.
Desde 25 de fevereiro, quando foi confirmado o primeiro caso de Covid-19, o Brasil testemunhou o crescimento exponencial de mortos e infectados, estando atrás apenas dos EUA em ambos os balanços. O agravamento da situação coloca o país como grande objeto de preocupação de especialistas e instituições multilaterais, notadamente pelos riscos à vida e condições da população mais pobre, sobremaneira a que vive nas periferias metropolitanas e suas favelas.
As projeções de crescimento do produto interno brasileiro indicam um severo quadro recessivo, o pior da história nacional em quase um século. Enquanto o governo brasileiro ainda acredita em redução de 4%, a OCDE estima queda mais acentuada, variando de 7% (cenário otimista) a 8,5% (cenário pessimista). Dados recentes indicam que o tombo do primeiro quadrimestre foi de 2%, total esse que carrega ainda a dinâmica econômica do pré-crise. A taxa de desemprego estaria em 14,5%, algo próximo a 14 milhões de desempregados, dos quais três quartos já estavam nessa condição antes da pandemia.
É de suma importância destacar que a crise provocada pelo novo coronavírus atinge o Brasil em momento muito complicado de sua história política e econômica. Desde 2015 o país tem enfrentado um ciclo marcado por instabilidade política e recrudescimento econômico. Em meia década, os acontecimentos e números mostram a complexidade do cenário nacional. Uma presidente impedida, lideranças políticas presas ou sob investigação por supostos crimes de corrupção, piora do cenário internacional para seus principais produtos, queda do nível de investimento e do ritmo de crescimento, problemas fiscais nos entes federados subnacionais e redução dos gastos sociais são alguns dos componentes da crise que o país vivia antes da pandemia.
Assim, o que se presencia no Brasil nesse momento é a superposição de crises, em outras palavras, a crise deflagrada pela Covid-19 engole a crise anteriormente instalada, se potencializando e, em grande medida, se retroalimentando. Nesse cenário, quais seriam os principais canais de transmissão (de chegada, instalação) da atual crise na economia brasileira? Como esses canais explicam o downturn doméstico?
Nos últimos cem anos o mundo experimentou um número considerável de crises econômicas, de diferentes graus de intensidade e abrangência geográfica, mas todas originadas a partir de um dos três perfis seguintes: de oferta, de demanda ou financeira. Dessa forma, tal como regra, as crises se derivam de fundamentos macroeconômicos, tensões geopolíticas e/ou rupturas setoriais específicas – estas muitas vezes associadas a desastres naturais ou climáticos.
A crise atual, por sua vez, tem seu cerne em um grave problema sanitário de saúde pública que traz de modo iminente como grande problema o risco à vida. Dado então que todos os esforços passam a ser mobilizados para a preservação da vida, o sistema econômico como um todo passa a sofrer os efeitos daquelas duas medidas consideradas necessárias e de máxima urgência em quase todos os países: o distanciamento social e o lockdown. O que se segue então são os efeitos sobre a economia mundial globalizada e interdependente, conectada como nunca antes em seus fluxos produtivos, comerciais, financeiros e de pessoas.
Nesse cenário, o Brasil passa a ser atingindo pelos seguintes canais: desarticulação/paralisação do comércio mundial, queda na demanda e preços de commodities, redução dos fluxos internacionais de capital e déficit de coordenação federativa.
Junto ao México, o Brasil possui o parque industrial mais diversificado da região. Ainda que venha experimentando desindustrialização desde meados dos anos 1990, o setor industrial ainda tem grande importância para a dinâmica econômica nacional e, especialmente, para a geração de receitas tributárias. Contudo, esse setor viu ampliar sua dependência em relação a partes e componentes produzidos em outras regiões do mundo, sobretudo na China e leste asiático, epicentros iniciais da crise.
A desarticulação de diversas cadeias globais de valor atingiu alguns entre os principais ramos da indústria brasileira, com reflexos sobre a economia urbana (setor de serviços) e parte da agroindústria. Como agravante, os mercados desses produtos foram duramente afetados pelas medidas restritivas e de isolamento adotadas tanto no plano doméstico, quanto no internacional.
Outro canal de transmissão se assenta na queda da demanda e preços das commodities no mercado mundial. Embora essa fosse uma tendência já observada desde o fim do boom das commodities em 2015, e que explica as dificuldades enfrentadas pela economia brasileira desde então, o grande lockdown resultou na redução da demanda global por produtos básicos, o que traz um cenário de perspectivas desoladoras para um país mundialmente reconhecido enquanto grande produtor e exportador de petróleo, minério de ferro, soja, celulose, dentre outros bens. Mantendo-se essas condições, a balança de comércio pode vir a ser duramente afetada, o que incorreria em problemas mais sérios para o balanço de pagamento. Nem mesmo a forte desvalorização da moeda nacional tem compensado, dado que o país também é um grande importador de produtos industriais e alguns agrícolas.
A reconhecida redução dos fluxos internacionais de capital, notadamente aqueles destinados ao financiamento do investimento, também põe grande pressão sobre a situação corrente. No caso brasileiro, remessas e ajuda oficial não são de grande peso, mas os investimentos de carteira e direto desempenham papel central para a manutenção de parte da atividade econômica. Com sua abrupta queda e os riscos de “desglobalização” ou maior fechamento de fronteiras, o país se vê frente a um grande desafio: como mobilizar fontes de financiamento ao desenvolvimento que permitam crescimento de mais longo prazo, aumento da produtividade e, por fim, o alcance de maior patamar de renda?
Por último, aquilo que chamamos “déficit de coordenação federativa”. Trata-se aqui da expressão da crise política vivida pelo país e o desajuste entre as medidas indicadas pela comunidade internacional para o combate à Covid-19 e as ações e pensamento do presidente do país. Bolsonaro tem sido reconhecido como um dos líderes mais questionados acerca das estratégias adotadas. De fato, o presidente minimiza os riscos da pandemia e até mesmo sua veracidade, associando-a a um plano internacional de poder das esquerdas.
Desde o início da pandemia o Brasil trocou de ministro da Saúde duas vezes e, nesse momento, quem está no comando não é especialista na área e atende pelo título de ministro-interino. Foram vários os momentos em que o presidente discordou publicamente das medidas adotadas pela maioria dos governadores e prefeitos que buscavam promover o isolamento social para achatar a curva de contágio e ganhar tempo para a adequação e ampliação dos equipamentos de saúde destinados à população infectada em necessidade de tratamento.
Mesmo as medidas adotadas pelo governo, debaixo de muita pressão política e social, têm sido consideradas muito aquém do necessário. A ajuda aos desempregados e trabalhadores que perderam renda por conta da pandemia, as medidas anunciadas de auxílio às empresas ou mesmo o plano de recuperação que parte do governo chamou de “Plano Marshall brasileiro” têm sido criticados por economistas de diversas correntes teóricas, ora pela sua pouca dimensão e abrangência, ora pela demora na implementação.