O advento da Covid-19, com foco inicial na China e definição de pandemia estabelecida pela Organização Mundial de Saúde – OMS, tem impactado vários países de maneiras diferentes, assim como diferentes têm sido as estratégias adotadas para lidar com a doença. Dentre posicionamentos políticos, iniciativas, estratégias, e seus resultados, duas percepções chamam a atenção em meio à pandemia: a dificuldade que governos com viés autoritário têm em lidar com a doença, e a desigualdade entre cidadãos quanto à resiliência em relação à mesma. De certa maneira, ambas influenciam, isoladamente ou de modo sinérgico, o grau com que um ou outro país tem sido afetado pela pandemia.
Via de regra, a questão do autoritarismo se apresenta já nos estágios iniciais, a partir da identificação dos primeiros casos, e está diretamente associada ao menosprezo à ciência, à baixa transparência em relação aos números da doença, e ao diversionismo nas tratativas de comunicação com a sociedade. Dependendo da forma, pode inclusive induzir populações à adoção de medidas questionáveis, como o uso de um ou outro medicamento sem eficácia comprovada, ou até mesmo a uma exposição mais arriscada à doença.
Já a desigualdade é trazida a lume um pouco mais adiante, quando a doença, em franca disseminação, atinge as parcelas socialmente mais vulneráveis das populações. O caso brasileiro é um exemplo do pior tipo, tendo sido o país palco tanto dos arroubos autoritários de um clã político ideológico extremado, quanto da desigualdade alavancada nos últimos anos e que pode atingir proporções abissais com a pandemia. Embora a questão política seja por si só um chamariz à discussão, e certamente há muitos tratando disso neste momento, gostaria de me concentrar aqui no segundo ponto, a questão da desigualdade, contribuindo para elucidar alguns modos de como esta é, ou não, percebida em meio à pandemia, especialmente no que tange ao acesso da população aos equipamentos de saúde, mas também sobre outros aspectos correlatos, sem a menor pretensão de exaurir o assunto.
Os números relativos à pandemia, sistematicamente atualizados em dashboards com dados de todos os países, além de causar reações diversas, ilustram a disseminação da doença e nos indicam a forma de propagação. A partir de um núcleo original, desta vez na China, o vírus se propagou seguindo as rotas de maior tráfego de pessoas pelo mundo. Aqui já denota um viés da desigualdade: os países primeiramente afetados são os mais entronizados na rede de comércio e serviços mundiais, por motivos variados. Isso explica em parte o “atraso” na chegada da doença na América do Sul e África, e até sua propagação internamente nestes continentes. O caso dos EUA é notório: o vírus, supostamente trazido por viajantes que retornaram da China, se espalhou rapidamente pelo território americano, reconhecidamente uma das regiões mais interconectadas do mundo.
No entanto, os números consolidados por países, embora sejam importantes para uma análise do quadro geral da disseminação e da sequência de países em situação crítica, não revelam situações específicas e, em especial, pouco informam sobre a desigualdade. Como já identificado, e exaustivamente discutido, o principal problema no enfrentamento da Covid-19 tem sido o estrangulamento causado sobre os sistemas de saúde nas proximidades dos picos de internação ocasionados pela disseminação não controlada da doença, gerando impactos para as pessoas infectadas e também sobre todos os demais procedimentos hospitalares regulares. Neste contexto, os piores cenários advieram justamente de locais onde o pico esteve muito além das possibilidades de absorção pelos sistemas de saúde, como se viu na China, Iran, Itália, Espanha e, mais recentemente, nos Estados Unidos, sendo o Brasil possivelmente o próximo da lista.
A disponibilidade de leitos de UTI varia muito entre os países. Na Europa, levantamentos recentes apontam variações de 4,2 leitos de UTI/100.000 habitantes em Portugal e até 29,2 leitos de UTI/100.000 habitantes na Alemanha, considerado um dos países com maior infraestrutura hospitalar para lidar com a doença. O Brasil, segundo dados oficiais, não fica muito aquém da média europeia, com 13,6 leitos de UTI/100.000 habitantes para o atendimento público (SUS) e 62,6 leitos de UTI/100.000 habitantes para a rede suplementar (privada, planos de saúde). E aqui reside um dos piores aspectos da desigualdade em relação ao enfrentamento da doença. A disponibilidade relativa de leitos é quase cinco vezes maior quando se trata da saúde privada, que atende a cerca de 1/3 da população, a depender da métrica adotada.
No entanto, estes números, embora reforcem a tese de que uma maior capacidade relativa, em termos de leitos de UTI, é fator relevante para a resposta à crise da Covid-19, como pode ser percebido no caso alemão, com baixíssima letalidade comparada com os demais países europeus, pouco contribuem para entender contextos locais e regionais, uma vez que há também uma disparidade de oferta relativa de leitos hospitalares entre regiões em um mesmo país. Neste sentido, no Brasil há concentração de infraestrutura crítica de saúde (leitos hospitalares gerais, de UTI, aparelhos respiradores, EPIs e pessoal capacitado) no sul-sudeste e grandes carências na região norte. Por outro lado, o mesmo sul-sudeste se destaca quando à maior cobertura relativa para o SUS, enquanto estados do eixo norte têm maior concentração de UTI no setor privado. Há também menor disponibilidade de infraestrutura crítica de saúde no interior dos estados, com maior criticidade nas regiões centro-oeste, norte e nordeste, conforme pode ser visto nos mapas abaixo (Figura 1).
Na Figura 1A, quanto maior o indicador (número de Leitos de UTI/100.000 usuários de planos de saúde privados, dividido pelo número de Leitos de UTI/100.000 usuários SUS), maior a concentração privada de leitos de UTI. Na Figura 1B está mapeada a concentração dos leitos de UTI nas capitais, em detrimento de um espalhamento proporcional à população, em que a situação ideal é de um número próximo a um.
A desigualdade regional chama a atenção quando colocamos no mapa os números da Macrometrópole Paulista (MMP), a qual, com seus 174 municípios, e 30 milhões de habitantes, corresponde a 74% da população do estado de São Paulo, além de movimentação econômica responsável por mais de 28% do PIB brasileiro. Presumivelmente, a infraestrutura crítica de saúde nesta macrorregião deveria ser das melhores do país. A Figura 2 ajuda a mostrar a precariedade nesta região, o que nos leva a pensar o quão pior pode ser a situação em outros rincões do país.
Nota-se, além da concentração de leitos de UTI na capital, de maneira absolutamente desproporcional à população ali residente, também a ausência de leitos de UTI em mais de 2/3 dos municípios da MMP. Isso em uma das regiões com maior capacidade de recursos do país.
Um aspecto menos patente da desigualdade em relação à disseminação e impactos da Covid-19, mas talvez mais revelador da fragilidade a que somos relegados, enquanto sociedade, dado o modelo econômico hegemônico, está na forma com que os números de infectados e mortos vão se mostrando ao longo do tempo. A doença atinge municípios e regiões pelo andar de cima, dos que viajam ao exterior e que têm recursos e planos de saúde para garantir tratamento providencial e adequado. As taxas iniciais de mortalidade relativa são baixas, justamente porque esta fatia da sociedade acessa as UTIs privadas e os melhores hospitais. Em muitos municípios de grande porte, nos quais a desigualdade de renda é maior e o contato entre as fatias mais abastadas e a população de baixa renda é tênue, e os limites bem marcados, as ações de isolamento social fazem com que a doença avance de maneira mais lenta. Diante deste quadro, o andar de cima, proprietário dos meios físicos de produção e distribuição, tem pressionado os governantes para a reabertura das atividades. Não são poucos os exemplos em que esta reabertura gerou aumentos das taxas de infecção, levando à exaustão os serviços públicos de saúde e afetando, sobremaneira, justamente a camada mais vulnerável da sociedade.
Quando a doença atinge os extratos sociais de menor renda, os efeitos da desigualdade ganham aspectos ainda mais constrangedores. Nos EUA, onde a doença já atinge o país por inteiro, os números demonstram tragicamente o que não era segredo nos meios acadêmicos: a taxa de mortalidade entre a população afro-americana atinge até cinco vezes a taxa da população branca. Por dentro destas taxas, fatores como a baixa capacidade nutricional e a prevalência de doenças crônicas com poucas condições de tratamento, expõe a perniciosa desigualdade. Somam-se a estes grupos, outros como os hispânicos, cujo acesso aos serviços pagos de saúde também é precário. No Brasil, além destas questões, as baixas condições de habitabilidade – periferias com moradias precárias e famílias numerosas –, a distância aos centros de atendimento e a ausência de condições mínimas de saneamento básico, agravam o problema sistematicamente.
Na esteira do falso dilema entre doença e economia, outros números surgem: o desemprego relacionado à Covid-19 atinge duas vezes mais trabalhadores de baixa renda. A julgar que no Brasil, mais de 2/3 dos desempregados pré-Covid-19 não tinham curso superior completo, característica dominante nas faixas de renda inferiores, certamente os números seguirão a mesma tendência. Por falar em educação, a quarentena expôs outra faceta do fosso entre a educação privada e pública, além da tão discutida dicotomia na infraestrutura e condições de trabalho dos docentes: a precariedade do acesso a meios e redes de informação qualificada pelos estudantes. Sim, estamos no topo quando o quesito é o número de aparelhos celulares, com mais de um por habitante, porém, mais da metade opera com planos pré-pagos e internet limitada e cerca de 1/3 ainda trabalha com sistemas de transmissão inferiores (2G e 3G). A discussão sobre a prorrogação do ENEM reflete, portanto, a imensa desigualdade no acesso a meios de educação digital em períodos críticos como o atual.
Epílogo
Diante de todas estas informações apresentadas, e dos pontos colocados à discussão, e assumindo sua assertividade, podemos concluir que a Covid-19 ampliou e ampliará ainda mais a desigualdade, em diversos aspectos, a despeito do que está sendo ou será feito para reduzir os impactos da doença sobre parcelas mais vulneráveis da sociedade brasileira.
Neste contexto, e na esteira dos que se perguntam sobre cenários pós Covid-19, me parece que o tema “desigualdade” é de suma relevância para os que pensam, e querem, algum avanço societário no sentido da resiliência a situações críticas como a que revelou a doença. Embora esta constatação pareça óbvia, a criticidade trazida pela pandemia pode potencializar elementos que apressem tal avanço, algo não conseguido quando se invocou o tema das mudanças climáticas, por exemplo. E é justamente a junção destes temas, e sua imbricada teia de dependências que podem advir nossos problemas vindouros. Não esqueçamos que o Sars-Cov-2 é fruto indireto da degradação de ecossistemas, de acordo com a versão mais plausível de sua origem, o mesmo moto gerador das mudanças do clima.
Antes, portanto, que um economista lance a máxima da aceleração econômica para resolução das desigualdades extremadas pela Covid-19, é preciso que o tema seja elevado ao foco das políticas e não esteja apenas considerado em seus efeitos colaterais. Certamente, a redução das desigualdades em suas diversas manifestações nos tornará mais resilientes não só a pandemias, mas também aos impactos de mudanças climáticas.
Aliás, dado o baixo nível de chuvas deste ano, podemos ter no ápice da Covid-19 no país, um acirramento de uma crise hídrica, que pode inclusive ter efeitos negativos para o enfrentamento da doença. Mas isso é assunto para um outro debate.