Trincheiras do pensamento e de ações anti-fascistas
Ousar sair de um lugar estático. Não reproduzir pensamentos-essência, permanecendo no mesmo lugar. Deambular, fluir diferenciando-se da mera repetição. Sem itinerários pré-determinados, somente em busca de caminhos singulares ou de outras singularidades em novos caminhos. Em o “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, Deleuze e Guattari falam de “um pensamento às voltas com forças exteriores em vez de ser recolhido numa forma interior, operando por revezamento em vez de formar uma única imagem, um pensamento-acontecimento, hecceidade, em vez de um pensamento-sujeito, um pensamento-problema no lugar de um pensamento-essência ou teorema, que faz apelo a um povo em vez de se tornar um ministério”.
Poderíamos pensar as problemáticas relativas à constituição de modos de subjetivação no Brasil a partir do sistema colonial e escravocrata ou do período ditatorial instalado a partir de 1964, como já o fizemos anteriormente. Mas, preferimos nos reter às intercorrências protofascistas atuais. Recentemente me vi, uma vez mais, impulsionada à aproximação de um pensamento-problema ao reler o livro do Primo Levi “É isto um homem?”. O relato do que viveu no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, é absolutamente assombroso. A devassidão dos corpos é insuportável, mas o esfacelamento da sua subjetividade – enquanto modo de ser anterior ao aprisionamento – nos evidencia que extermina-se o corpo, mas, também, quer se exterminar o sentido de vida dos prisioneiros. Seus algozes habitam uma categoria de excrescência humana pouco vista em toda a história dos povos. A dimensão da destruição nazi-fascista é imposta através de uma submissão, de um fazer obedecer que não permite contestação alguma. Primo Levi nos elucida: “Imagine-se agora, um homem privado não apenas dos seus seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado da expressão “Campo de extermínio”, bem como o que desejo expressar com chegar ao fundo”.
Na atualidade a naturalização das ações do capitalismo neo-liberal se faz pelo mundo afora e, visando uma dominação socioeconômica e sociopolítica dos povos, utiliza as redes de informação para melhor desinformar. Robert Proctor chamou de “Agnotologia” a ciência que tem por função a análise dos fenômenos de desinformação cultural e social introduzidos com vista à deliberada promoção da ignorância ou da incerteza, a partir de objetivos ideológicos, financeiros, políticos, comerciais, militares. Em nosso país o desgoverno atual visa, exatamente, confundir, obscurecer, impedir o pensamento de se desenvolver. Os poderes constituídos se esforçam para destituir-nos de nossa capacidade de pensar e de agir. Mas, se o sistema capitalista nos tira nossa capacidade de pensar e nossa possibilidade de agir, não passaremos de corpos mutilados, sem consistência, desterritorializados em relação à nossa potência e limados em nossa capacidade de afetar e ser afetados. Não mais que zumbis vagantes. O governo atual procura através da produção intencional de ignorância junto à população, atingir objetivos eleitorais e financeiros. No começo foi o kit gay, a mamadeira de piroca e depois as enganosas informações em relação à Covid. Além disso, coloca-se em curso o desmantelamento crescente de nossas instituições educacionais, de nossos centros de pesquisa científica, de nossos centros culturais, cortando recursos para pesquisadores, desqualificando pesquisas científicas. A posição anti-vacina e contra a evidência do aquecimento global desinforma e traz riscos mortíferos para a população. Procura-se criar uma atrofia permanente de nossa força criativa. Bruno Latour se pergunta por que quando somos convocados a combater o capitalismo nos sentimos tão desamparados. “Confrontado com tal pergunta, vou começar com esta ideia – que um dos afetos do capitalismo, isto é, de pensar em termos de capitalismo, é gerar na maioria das pessoas que não se beneficiam de sua riqueza um sentimento de desamparo e nas pessoas que dele se beneficiam, um imenso entusiasmo junto com um torpor dos sentidos”, esclarece ele.
Mas, ainda que em tempos de pandemia e proto-fascismo as conexões criativas individuais e sociais que possamos estabelecer se façam mais tortuosas, não precisamos nos manter em uma condição doída e solitária. Como nada é irretocável é preferível se expor e errar do que simular placidez. Por vezes encarna-se em nós tal perplexidade face às condições atuais do nosso planeta, que poucas camadas de sentido podem se territorializar de modo construtivista. Porém, não devemos fortalecer quaisquer aquiescências resignadas. Mesmo que oscilemos, não poderemos jamais abdicar da nossa possibilidade de pensar e agir. Face às precariedades econômicas, políticas, climáticas não há “pedido de socorro” que seja ouvido pelo capitalismo. Em uma de suas campanhas o Greenpeace se fez assertivo: “Se o mundo fosse um banco, eles já o teriam socorrido.” Eles?! Certamente o mercado e o estado, que gozam de uma estreita triangulação com o capital financeiro.
Do lusco-fusco que se criou em nós entre pensamento, sensações, experimentações micro-políticas, ciência, poesia, música, arte não podemos perder, de todo, o hábito dos grandes vôos. Nesta pandemia e face ao pandemônio político, o dilaceramento causado por perdas e dores não curadas, não pode tornar-se o abrigo mais seguro em relação a outros riscos que a vida possa trazer. E, se tal ocorrer, só nos restará encarnar uma condição vitimizada e sofrida no corpo e na alma, em todo gesto e em cada olhar? Acreditamos que não. Nos perguntamos, então, que redes vitais poderiam ser tecidas rompendo a catatonia do desejo, criando outras tramas em movimentos desejantes que construam outros territórios subjetivos e sociais. Ainda que estes não tornem excludentes a dor, a solidão, o vazio, a frustração, o limite, a impossibilidade, como ousar e ser legiões de vozes? A partir de muitos impulsos, variadas inclinações, múltiplas singularidades como nos colocar em conexão com as mais distintas realidades contemporâneas?
A ideia seria conectar-nos à vida assumindo desde os mais singelos aos mais disruptivos desejos, não esterilizando e nem ferindo de modo mortífero a nossa própria vitalidade. O propósito é, ainda, romper com o desejo catatônico que induz a um certo torpor anestesiando a nossa capacidade vital, criando uma condição paralisada e reativa em oposição às forças ativas que nos impulsionam. Tal condição cristalizada é o desejo como falta, carente ou pedinte, que busca uma completude ou uma totalidade que pede um grau zero de repouso para aliviar a tensão da falta. Não. Não falo do desejo como falta, mas sim do desejo como produção, como produção de outras possibilidades de vida. Um desejo revolucionário, subversivo, que derrube as ordens-vigentes-em-nós e que é fluxo vital que se conecta a outros fluxos. Desejar seria experimentar uma pluralidade de outros universos, inverter perspectivas, ver diferente do olhar monolítico, escapar dos congelamentos identitários, deixar o corpo pensar, pensar através das vísceras, mudar de pele.
Buscamos trabalhar a problemática da constituição dos modos de subjetivação e, para tanto, não ignoramos que em nosso país instauraram-se dispositivos para se criar um tipo de sociedade protofascista, que obstaculiza a construção em devir – construção permanente – de uma sociedade democrática com seus processos de singularização individual e social. Querem nos impingir uma identidade cultural amesquinhada pelo desrespeito aos direitos humanos, às minorias sociais, aos pobres, à emancipação do país. No plano macro-político, através de atitudes segregadoras e desrespeitosas, estabelece-se um discurso para a população, contando com a aquiescência da grande mídia e de redes sociais – via fake-news – que diz de um governo autoritário e genocida. Este manipula as relações com os cidadãos brasileiros, banalizando problemáticas sociais e políticas deveras importantes, que dizem respeito à questão de vida ou morte de nosso povo. De um modo desdenhoso ignora a pandemia, a miséria, o desemprego, a fome, as enchentes. Dissemina o ódio e ridiculariza a dor do outro. Entre gargalhadas o governante de plantão escarnece: ” Estou com Covid, estou com Covid” e satanicamente ri. É a banalização do mal, como problematiza Hannah Arendt.
Em seu livro “Eichmannn em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal”, Hannah Arendt nos aponta que Eichmann era desprovido de qualquer pensamento crítico, pois tão somente executava toda e qualquer ordem sem nada questionar. Tampouco pensava sobre o sentido de seus atos. Era totalmente desprovido de uma ética que o levasse a refletir sobre as ordens dadas por seus superiores. Hanna Arendt percebe que o nazismo criou uma multidão de seguidores incapazes de qualquer visão crítica. Neste sentido, Eichmann era apenas um burocrata que cumpria rigorosamente as ordens que recebia. Daí o mal tornar-se uma banalidade. Daí a mediocridade do não pensar. Todos regidos pelos valores ideológicos do partido e seu projeto de poder. As ordens emitidas pelos escalões superiores do partido são apenas obedecidas cegamente pelos escalões inferiores. O mal seria, então, a não consciência dos cidadãos massificados. Daí que o mal se torna um ato banal: um simples cumprimento de ordens, um estrito senso de dever. É o não pensar que instala o mal. A dominação político-social nazista elimina de cada um a conexão com o sentido a dar à sua vida, às suas atitudes, a seu modo de pensar. Não se fazem mais responsáveis por si mesmos. E é então que o mal não advém apenas de mentes doentias, mas passa a ser praticado de forma corriqueira por amplos setores da população. Não monstruosos. Comuns, meramente comuns.
O catastrófico governante brasileiro desumaniza os próprios filhos com nomes inumanos e se refere a eles como 01, 02, 03, 04. Escárnio ou desconhecimento histórico? Parece achar tal denominação espirituosa e interessante. Quando o exemplo que temos deste modo de denominar humanos se deu nos campos de extermínio, quando os prisioneiros destes tinham números tatuados no braço e esta era sua identificação. Seus nomes se viram soterrados pela lama nazi-fascista. Manipulador e falso moralista, o referido governante diz-se favorável a uma família tradicional e religiosa. No entanto, quando apela para o “Deus acima de tudo”, usa o nome de Deus sem nenhuma reverência transcendente mas, apenas, para melhor servir a interesses profanos em prol de si mesmo e de sua familícia. Se perde na inescrupulosidade das rachadinhas, na dilapidação do dinheiro público, na distribuição descarada de verbas para a compra do chamado centrão. Quando deputado, segundo ele próprio, usou um apartamento funcional – que não lhe era necessário – apenas para “comer gente”.
O estado brasileiro tem promovido a morte de parte da população brasileira via descaso com a pandemia, via desemprego, fome, miséria. Tem agido, também, de modo mortífero em relação aos bens do país: Petrobras e refinarias, Eletrobrás, reservas amazônicas e sua devastação atual com nefastas consequências para a condição climática, dentre outros bens. Stephen Hawking, um dos cientistas mais respeitados da história, definiu as mudanças climáticas como um dos grandes perigos que enfrentamos na atualidade. Mas não é levado em conta pois a destrutividade é um dos fundamentos do necrofascismo. Seus seguidores alardeiam a ideia de catástrofes iminentes, que atingirão seus inimigos e até a si mesmos. Como disse Adorno, é um delírio de aniquilação mascarado de salvação, a partir de uma visão distorcida da realidade. A violência se incrustra de forma generalizada em toda a sociedade, inclusive no próprio estado predador, que pode chegar a destruir a si mesmo e a vida social, engendrando conflitos entre os próprios grupos que o compõem. A vida social se organiza sob a fantasmagoria ameaçadora da catástrofe. Daí a concepção de Estado Suicidário, criada por Paul Virilio, em que o estado se colocaria como ator de sua própria catástrofe espelhando a face mais cruel do neo-liberalismo. Vladimir Safatle nos esclarece no que diz respeito ao nosso país: “Caminhamos para além da temática necropolítica do Estado como gestor da morte e do desaparecimento. Um Estado como o nosso não é apenas o gestor da morte. Ele é o ator contínuo de sua própria catástrofe, ele é o cultivador de sua própria explosão. Para ser mais preciso, ele é a mistura da administração da morte de setores de sua própria população e do flerte contínuo e arriscado com sua própria destruição.”
Haja visto que a condução negacionista das medidas que se fariam necessárias no combate à Covid 19 trouxe como consequência mais de 650.000 brasileiros mortos até o momento. Falas e ações do presidente genocida – que faz da morte do outro o seu gozo pessoal – reverberam em nós e nos dilaceram em nossa cidadania e em nossa humanidade. Ressaltamos, na atualidade, um sentimento de repugnância que se instalou em parte do povo brasileiro, que vê o atual presidente como um ser inumano abjeto e asqueroso, uma praga fascista traiçoeira que dissemina o ódio e busca desnortear a todos com suas mentiras e impropérios, como um parasita pegajoso que se gruda em determinados setores da população e lhes rouba a capacidade de sentir, pensar e agir como homens e cidadãos e os transformam em boiada descontrolada e enfurecida. A condutopatia em relação à Covid: “É só uma gripezinha” e o combate à vacina, tornou este desgoverno refém desta sua posição. Se admitir que a vacina é eficaz e salva vidas, terá de admitir, também, que matou milhares de brasileiros ao retardar a sua compra. Sua conduta criminosa levou à adesão até de setores ligados à área da saúde que deveriam se unir em defesa da vida – como a rede Prevent Senior. No uso criminoso da cloroquina e da ivermectina – medicações sem eficácia comprovada no combate à Covid propostas pelo desgoverno – este convênio médico levou à morte inúmeros pacientes, estabelecendo uma equivalência estarrecedora de que “óbito também é alta”.
O gueto bolsonarista colocou-se, no plano macropolítico, a serviço dos interesses do neo-liberalismo e tornou-se a expressão política hegemônica do capital financeiro. Do ponto de vista micro-político os chamados bolsomínions estabelecem uma relação racista, machista, branca para com o outro. Uma relação etnocêntrica de quem se acredita superior. Esta condição gerou um vale tudo geral em nosso país, em que a disseminação patológica do ódio e da violência estimulou a criação de situações aberrantes em toda parte. Recordemos, ainda no período eleitoral em 2018, o ataque agressivo que sofreu um estudante de medicina que, a caminho da universidade, foi barbaramente espancado por bolsomínions simplesmente porque estava de camisa cor de rosa.Tal situação foi a primeira de uma série infindável de outras tantas. A cultura da violência se propagou cada vez mais. Haja visto a proliferação de feminicídios e infanticídios, estupros, maus tratos a mulheres, idosos, crianças, à população negra, violências policiais inaceitáveis, inumeráveis assassinatos de pessoas trans e a discriminação xenófoba de imigrantes, principalmente se negros e pobres. Chega-se ao assassinato do congolês MoÏse Kagambe em um quiosque no Rio de Janeiro às vistas de quem quisesse ver para crer até onde vai a barbárie necrofascista. Não se respeita o outro em seus direitos humanos e sociais e não se teme o exercício de leis que combatam tais desmandos. Ao contrário, esperam que tais atos insanos sejam acobertados e jogados embaixo do tapete. Apostam na impunidade e/ou na complacência judicial.
O capitalismo contemporâneo não se contenta apenas com a mais valia econômica e cria, também, modos de subjetivação capitalísticos, modos de ser e estar no mundo que se submetam a seus desígnios e a seus desejos vorazes. Produção de subjetividade fabricada, modelada, recebida e consumida no plano social, como nos elucida Guattari. A problemática micropolítica se situa ao nível da subjetividade. O desgoverno protofascista que está no poder injeta hoje na sociedade brasileira modos de ser que passam por uma suposta moral religiosa, um anti-comunismo desvairado e dissociado da realidade, tudo embasado em mentiras e mais mentiras que produzem um tipo de economia subjetiva de desejo. Ou seja, uma massiva produção de subjetividade como matéria prima que vai constituir os modos de pensar, de sentir, de agir do “gado” que o segue, numa bolsonarização do modo de ser de uma significativa parcela dos brasileiros, numa incessante criação de subjetividades fascistóides nutridas pelo ódio e crueldade bolsonaristas. Constitui-se, a serviço do neo-liberalismo, uma estreita conexão entre as máquinas produtivas, as máquinas de controle social e as instâncias psíquicas. Articulam-se as relações de produção econômica às relações de produção subjetiva, pois esta é o pilar básico de modelos de comportamento, de criação de sensibilidades, de percepção, de memória. Há uma modelização bolsonarista dos processos de subjetivação atingindo o objetivo de, também, reforçar o controle das realidades sociais e políticas.
A onda protofascista bolsonarista contou com a parceria do farsesco Olavo de Carvalho que cultuava a linguagem do ódio através de xingamentos permanentes nas redes sociais e se julgava possuidor de grande capacidade intelectual. Esta dupla medonha – o suposto pensador e o mandatário de plantão – contribuiu com a eclosão de uma subjetividade difamatória que procura se instalar como o modo social vigente. O ato de escrachar, o ataque verbal, a vontade de destruir ressoam como modalidades de poder. Modos estes regidos por uma submissão cega de seus apoiadores, que têm aquele que os comanda como modelo a ser seguido, como mito a ser aclamado, com um padrão de comportamento a ser copiado. O xingamento, enquanto publicidade ostensiva do ódio, expressa, também, o desejo daquele que xinga de esconder a própria fragilidade. A tentativa é de se impor uma nova ordem social, guiada por permanente manipulação e desnorteamento do desejo coletivo de seus seguidores. E há de fato um investimento mortífero do chamado gado ao reterritorializar o seu desejo de modo catastrófico em torno das aberrações bolsonaristas, que os conduzem à sua própria destruição. Criou-se, assim, uma divisão das camadas populares que nenhum benefício lhes trouxe. As fake news, os ataques a negros, pobres, mulheres, gays, trans, as mentiras deslavadas sobre seus oponentes políticos funcionam como dispositivos na criação de uma subjetividade coletiva – com traços evidentes de crueldade – na busca de destruição do diferente, criando um acirramento profundo da divisão social. O discurso bolsonarista unificou alguns setores da sociedade brasileira e fechou-lhes as portas rumo a quaisquer processos singulares em seu modo de pensar, que façam fugir esta condição fascistizante.
Afirmamos assim, que a reprodução do modelo macrofascista atual passa pela macro e pela micropolítica. Contudo, também se poderá criar uma micropolítica processual que procurará incidir no cerne de tal subjetividade capitalística desmascarando-a não apenas com denúncias (ainda que procedentes), mas com atitudes e práticas múltiplas e descentradas que a desconstruam. Haveria assim um confronto escancarado de modos de subjetivação distintos. Guattari não trabalha com o conceito de indivíduo. Para ele o indivíduo é serializado, modelado. A subjetividade não se totaliza no indivíduo. Repetindo: para ele a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social. Ou seja, a constituição da subjetividade capitalística advém de agenciamentos sociais criados a partir de condições históricas determinadas por valores e concepções oferecidas como a produção de maior valor no mercado da subjetividade. Mas pode se constituir, também, uma micropolítica de mutações da subjetividade que extrapole o campo da individuação ou do indivíduo, que ultrapasse o circuito egoico do eu. E, mais ainda, desconstrua os modos de subjetivação capitalísticos criando outras derivas singulares de subjetivação. Ou seja, a existência se constituindo, em seus processos singulares de subjetivação, como resistência.
Assim, o capitalismo constitui seu poder via produção social, material e subjetiva. O indivíduo é visto por Guattari como consumidor de bens de consumo e de subjetividade. Como já dissemos, em nosso país urde-se a criação de um universo que alardeia a discriminação social e sexual, a violência verbal ou pelas armas, o racismo e a xenofobia, o que vai criando modos de subjetivação necrofascistas. O que deveria causar horror cria um gozo histérico que toma parte da sociedade brasileira e, a partir do bolsonarismo, outras relações se estabelecem no meio familiar, escolar, mediático. Cria-se uma economia subjetiva composta por estes componentes sociais fascistas, assumidos enquanto rostidades-padrão vividas nas existências particulares dos indivíduos. Os indivíduos se identificam com este modo de ser criando para si uma identidade protofascista.
Se a ideia com a qual estamos trabalhando é a da constituição de uma subjetividade capitalística, isto nos leva a ver a sociedade não como a somatória de sujeitos individuais, mas a sua subjetividade como resultante de entrecruzamentos sociais, econômicos, midiáticos, tecnológicos, o que acarreta constituições subjetivas identitárias. Por exemplo, a ascensão do capitalismo trouxe consigo a emergência de uma nova força de trabalho, o que exigiu a invenção de novas coordenadas de produção de subjetividade. A revolução francesa prega a igualdade de direitos a todos os indivíduos e, também, a prática de deveres que lhes serão cobrados pelas novas leis. Tal situação implicou em novas mutações subjetivas. Assim, em todos os tempos, as condições de subjetivação se conectam às mutações sociais e políticas. Neste sentido há que se atentar hoje, em nosso país, à criação de modelos sociais pseudo-democráticos e individuações que buscam a padronização de todos.
Para as elites financeiras e econômicas é como se o desgoverno atual fosse tão somente um mau momento. Como se na eleição deste desgoverno, tivesse havido apenas uma má escolha e não o neo-liberalismo testando modelos variados de dominação. Doa a quem doer. Mas as elites financeiras nunca sofrem as consequências sociais e materiais dolorosas que recaem sobre o povo trabalhador. As chamadas elites brasileiras só passarão a rejeitar este desgoverno quando seu modo de conduzir o país começar a desestabilizar os seus próprios interesses. É então que o capitalismo buscará impor um novo modelo de desejo social, uma outra forma de exploração e é preciso que o povo interiorize esta mudança como favorável. É a produção de desejo da população, mais uma vez sendo colocada a serviço da produção de lucro para o capital.
As criações científicas, artísticas, literárias, culturais, são usurpadas com modelizações rebaixadas pelo protofascismo, que quer controlar toda e qualquer criação libertária. Assim, os vetores de singularização podem ser absorvidos pela subjetividade capitalística e conectados a processos de individuação que querem atar as vias singularizantes à culpa, à moral, às leis dos que detém o poder. É na conexão com a realidade externa e não em um ensimesmamento individual que nos oporemos a identidades modelizadoras. O sistema de espelhamento com atitudes, gestos, políticas do bolsonarismo, com o qual parte da população se identifica, leva ao bloqueio de processos de singularização libertários e à instauração de processos de individualização próprios a dominados – alienados em relação a si mesmos e à realidade que os rodeia.
Ocorre com o bolsonarismo um desmonte de determinados modos de vida dos brasileiros e outros valores são embutidos em toda a sociedade, produzindo em determinados setores sociais individualidades serializadas, ressentidas, raivosas, cruéis mesmo. Esta especular condição criada pelo atual mandatário, seu ciclo familiar e o chamado escritório do ódio se vê subsidiada por setores do legislativo brasileiro, pelas grandes mídias e por determinadas redes sociais. A televisão Record e o SBT mantêm-se, mais que nunca, alinhados ao projeto neo-liberal e ao desgoverno bolsonarista. Mas, também, não podemos isentar a rede Globo de ter alçado este desgoverno ao poder. E, ainda que hoje tenha restrições a seus atos mais insanos, face ao comprometimento desta emissora com o projeto neo-liberal, já a vemos acenando a uma possível candidatura do ex juiz corrupto, parcial e entreguista Sérgio Moro. A rede Globo de televisão mantém o mesmo ódio de sempre à esquerda e, em particular, ao PT e ao Lula.
Como já apontamos, os valores instituídos pelo neofascismo passam pelo desarvoramento de setores populares, pelo cinismo, pela mediocridade, pela mentira, pelo desprezo ao outro, pelo racismo, pelo etnocentrismo. Tais existências manipuladas pelo bolsonarismo se desvitalizam, se despotencializam, se insensibilizam. Surgem indivíduos-zumbis, seguidores atônitos, incapacitados em sua potência de singularização. Ou seja, incapacitados em sua capacidade de pensar, de sentir, de agir. Neste sentido falamos de uma fabricação de subjetividade que é usada como suporte e sustentação das aberrações deste desgoverno. Há uma identificação com um modo de ser em que todos são desrespeitosos, despreparados, entreguistas, inconvenientes, incultos, maldosos, violentos. Haja visto o kkkkk do suposto governante pela comparação da primeira dama da França com a Michele no quesito beleza (obviamente não no quesito ética), dos reiterados erros de português do então ministro da educação Weintraub, da falácia do suposto domínio do inglês de Eduardo Bolsonaro, que ainda foi cogitado para ser o embaixador do Brasil nos EEUU. Salta aos olhos de quem quer ver o estímulo do desgoverno às queimadas, indo na contramão da defesa do clima e seu alinhamento à devastação da Amazônia por mineradoras. Também constatamos o seu apoio a milicianos atuais e a torturadores da época da ditadura, seu riso pérfido e as piadinhas face à morte de parentes de Lula e aos atingidos pela pandemia: nunca visitou um hospital e nunca se solidarizou com os parentes dos vitimados pela Covid. Há uma desvalorização e um empobrecimento político e cultural do povo brasileiro, que é usado como massa de manobra de manipulações subjetivas e sociais absurdas. Alimenta-se o não-pensamento, a não-solidariedade, a não-diversidade. “Eu não sou coveiro, porra”, disse o governante sobre a pandemia. Nenhum gesto solidário em relação aos mortos e seus familiares.
Reafirmando: a produção de subjetividade capitalística se apresenta como força de controle social. Os detentores neo-liberais do poder buscam controlar não apenas o sistema financeiro e de produção econômica, como a própria vida subjetiva e social. Como indica Guattari, os indivíduos podem viver sua subjetividade de dois modos: de um lado, há uma submissão à subjetividade numa condição de alienação e opressão; de outro, são criados processos de singularização. Não estabelecemos um corte entre as questões sociais e os problemas individuais. As sobrecodificações do governo bolsonarista buscam criar um consenso subjetivo via seus seguidores. A posição individual de cada um se vê sobredeterminada pelas significações protofascistas dominantes. Trata-se de quebrar tais significações criando outros desejos, abrindo caminhos para outras realidades. Quem resiste a estas imposições: estudantes, professores, sindicalistas, movimentos negros, movimentos de mulheres, algumas torcidas de futebol, população indígena, movimentos sem-terra e sem-teto, grande contingente de artistas, população LGBT, conseguem romper um pouco mais com a angústia que se alastra em todo o país, por serem aqueles que não abrem mão de seu modo de pensar, não renegam suas relações sociais e culturais, batalham por melhores condições de vida e rejeitam cargo, prestígio ou qualquer benesse que este poder de plantão possa lhes oferecer. Mas, o totalitarismo atravessa as estruturas estatais, políticas, institucionais, familiares, individuais. Assim, toda e qualquer valorização da vida se vê ameaçada. Seja o direito ao trabalho, à vacina, aos direitos humanos, ao ensino básico e à universidade, a manifestações culturais e religiosas (se diversas do padrão evangélico). Todos devem se sentir culpados se não se referenciam ao modelo dominante vigente. Querem destruir o nosso direito de existir, de pensar, de diferir. Mas, insistimos em nossa capacidade de resistência. Existir, pensar, diferir é, para nós, resistir.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Bolsonaro: tragédia e estagflação“, de Paulo Kliass.