O capitalismo assumiu a sua forma mais avançada como economia monetária financeirizada, na qual os grandes blocos de capital oligopolizados e internacionalizados detentores do poder de empregar os fatores de produção para a criação da riqueza social são dirigidos pelo imperativo da acumulação de riqueza abstrata. Isso não é característica ética ou moral dos capitalistas, eles não são bons ou maus. Não estamos no mundo das concepções idealistas. São as forças sistêmicas que impõem ao capital a necessidade de expansão sob a forma mais adequada para a sobrevivência em sua natureza capitalista.
Essa natureza mutante da forma capitalista para preservar a essência do capital resulta em alienação e formação de concepções mágicas para seduzir e, se não der certo, submeter pela força bruta, mas, mais importante, pela força da necessidade de subsistir da maioria dos despossuídos de capital.
A subordinação ao capital financeiro, a financeirização, não ocorre de forma supostamente autônoma e independente em cada país. Ocorre com muito mais força no sistema internacional, onde vige a lei dos mais fortes, que não se submetem ao direito internacional nem aos organismos multilaterais criados por eles.
A financeirização é uma forma diferente daquela que vigorou no pós-segunda guerra mundial regulada pelo “Acordo de Bretton Woods”. Neste, as instituições foram desenhadas para promover a industrialização dos países atrasados; vigorava o controle da conta de capitais; os estados nacionais tinham uma autonomia relativa para implementar políticas públicas. A necessidade política de mostrar um capitalismo mais civilizado em face da ameaça do comunismo pela existência da URSS fez com que os sindicatos tivessem uma forte atuação para a elevação dos salários e o avanço do estado de bem-estar social. Nada disso foi uma dádiva dos éticos ou bondosos capitalistas, mas um intenso e acirrado processo de luta de classes, onde o capitalismo tinha que se adaptar a um mundo que ameaçava a sua reprodução como sistema mundial.
O processo de descolonização mostra claramente essa faceta mais liberal de entregar os anéis para não perder os dedos, mesmo mantendo a outra face da moeda em guerras e intervenções militares em áreas onde achasse que o perigo comunista pudesse assumir uma ameaça mais consistente. A América Latina sofreu com as ditaduras apoiadas por Washington, a Ásia e a África com guerras e ditaduras também apoiadas pelas potências hegemônicas. Ainda assim, esses anos para os países desenvolvidos são considerados os “anos dourados” do capitalismo. Dourados para quem, cara pálida?
Essa fase “dourada” entra em crise nos anos setenta com a decisão unilateral americana de romper com a paridade dólar/ouro, as duas crises do petróleo e o início da transição para uma nova fase do capitalismo. Nessa transição, a hegemonia da política econômica deixa de estar nas mãos dos “keynesianos bastardos”, apelido dado por Joan Robinson aos keynesianos que formularam a junção de Keynes com os neoclássicos, e passa para a hegemonia dos monetaristas friedmanianos sob a liderança de Reagan e Thatcher, depois para os “neoliberais”. A melhoria da economia viria pelo aumento do consumo dos mais ricos e pelo investimento, com o consequente aumento do emprego. Para tal, julgavam necessário combater os sindicatos, reduzir os salários da classe operária e fragmentar o estado de bem-estar social, segundo eles, responsáveis pela inflação e pelo achatamento dos lucros das grandes empresas.
A ideia de um capitalismo organizado e social-democrata na Europa vai por água abaixo. Não existe sociedade “só o indivíduo” e “there is no alternative (TINA)” são as frases de Thatcher que se tornaram um mantra prenunciando uma nova era que começava e que iria ser reforçada nos anos noventa com a política neoliberal.
A partir dos anos noventa, com a vitória americana na guerra fria e o regime unipolar geopolítico, vários intelectuais passaram a defender a inexorabilidade do fim da história e a concepção de que o mundo era plano e essa “cientificidade” garantia a racionalidade do caráter benigno da globalização. Essa suposta nova teoria tem dois pressupostos principais:
- (i) o processo de globalização ocasionará a homogeneização das economias nacionais e a convergência ao modelo liberal de mercado;
- (ii) os Estados nacionais não são capazes de interferir nesse processo.
O neoliberalismo foi a política econômica elaborada pela potência hegemônica para manter a hierarquia das moedas conversíveis, o dólar como padrão monetário mundial e para evitar que os mercados emergentes pudessem ganhar autonomia. Não foi por acaso que, nesse período de unipolaridade, as recomendações das políticas de estabilização “urbi et orbi” têm as seguintes características: liberalização econômica e privatização, austeridade fiscal, desregulamentação, livre comércio e redução da despesa pública para reforçar o papel do setor privado em detrimento da intervenção do Estado. É o mercado coordenando e dirigindo o Estado com base em um individualismo libertário onde a liberdade ocupa todo o espaço institucional e expulsa a igualdade para fora da sociedade.
No Brasil, o neoliberalismo assumiu a sua forma mais notória após o sucesso do Plano Real em estabilizar os preços. É importante lembrar que um dos fatores cruciais para o lançamento do Real foi o calote aplicado pelo governo Collor na dívida pública, que na época estava em 20% do PIB. Porém, ao fim dos oito anos de mandato de FHC, a dívida estava em 62,6% do PIB, o balanço de pagamentos estava em crise causada pelo estelionato eleitoral para reeleger FHC, a irresponsável campanha de José Serra falando em caos se Lula fosse eleito, etc. Esta combinação explosiva deflagrou um processo de fuga de capitais, que nem a enorme elevação da taxa de juros conseguiu evitar com elevação dos preços, aumento do desemprego e enfraquecimento da economia ainda convalescendo da crise cambial e do racionamento de energia. A elevação da taxa de juros não resolveu nada, apenas elevou a dívida pública, valorizou o câmbio, desestruturou as cadeias produtivas internas com o aumento das importações.
As reminiscências históricas conduzem à seguinte pergunta: se a elevação da taxa de juros não combate a inflação diretamente e ainda fortalece as expectativas da sua elevação futura, quem se beneficia com isso?
O aumento da taxa de juros, dada a regra da sua fixação pela inflação passada e o prêmio de risco futuro, realimenta a expectativa de aumento da inflação futura. Juros elevados aumentam o risco de insolvência da dívida pública, que aumenta com o aumento de juros que promove a diminuição da atividade produtiva (PIB) e a arrecadação de impostos, ou seja, eleva o déficit primário. Por mais estranho que pareça, os agentes do mercado financeiro e seus arautos voltam a pressionar por mais austeridade fiscal e aumento dos juros. E assim o país entra em looping.
O caminho até agora segue um raciocínio que gera o problema: os juros altos reduzem a demanda, cai o cresimento e o emprego. A diferença entre a taxa de juros e a taxa de crescimento aumenta, portanto a arrecadação fiscal cai e a razão dívida pública/PIB cresce, sem que os gastos aumentem. De novo, cresce a pressão por mais aumento dos juros, começando tudo de novo.
O que está em jogo é a democracia
Haddad defende essa tese. Mas esta proposta gera insatisfação popular e enfraquece a democracia. A literatura científica desmoralizou a tese da contração fiscal expansionista que o Haddad defende. Não são apenas economistas de esquerda que questionam a hipótese dele. O próprio “inventor” da tese que o Haddad abraçou, baseada no “Consenso de Washington” já fez autocrítica parcial. Até o FMI já formulou críticas à hipótese teórica do ministro Haddad.
O realismo mágico de achar que o ajuste fiscal vai formar expectativas positivas para o investimento por reduzir o tamanho do Estado e gerar “poupança pública” não passa de uma epifania intelectual.
O goveno Lula que surgiu de uma enorme vitória contra as trevas do autoritarismo, do negacionismo e do neoliberalismo não pode cair na esparrela do realismo mágico da macroeconomia neoclassica. Isso pode significar o fortalecimento do bolsonarismo.
Um grande problema derivado deste rumo é que a política macroeconômica atual enfraquece o binômio fundamental para resolver as eleições de 2026: crescimento e políticas sociais.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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