A economia brasileira apresenta graves e longevos problemas estruturais. Não fora bastante, eles vêm sendo seriamente agravados desde 2011 e, em especial, a partir da ruptura institucional que alçou ao poder o senhor Michel Temer (em 2016). Neste artigo nos ateremos ‘apenas’ ao que denominamos de as raízes da referida desestruturação. Mais precisamente: ao período iniciado em 1970 e que se estende até o final da primeira década do século XXI (os anos subsequentes, como sugerido, de agravamento dos apontados problemas estruturais, serão analisados em um próximo trabalho). Isto posto, a reflexão que segue está organizada em duas seções: I) Os decênios 1970, 80 e 90: algumas raízes da supramencionada desestruturação; e, II) A primeira década do século XXI: os avanços econômicos e sociais logrados não se fizeram acompanhar do efetivo enfrentamento das necessárias mudanças estruturais (para efeito da reestruturação da economia brasileira).

I – Algumas raízes da crise estrutural da economia brasileira – dos anos 1970 aos 1990’s

A partir do final da década de 1960 e em todos os anos 1970, a economia brasileira experimentou altas taxas de crescimento da renda nacional (vide as muitas obras de infraestrutura que foram levadas adiante, as elevadas taxas de formação de capital fixo e o aumento do consumo agregado), marcada expansão da oferta de postos de trabalho e, derivadamente, significativa redução das taxas de desemprego. Considerados os anos 1950 como ponto de partida analítico, pode-se dizer que por cerca de trinta anos o Brasil foi, em certa aproximação, a China das últimas décadas. Afinal, poucas economias do mundo cresceram como a brasileira no período em tela. Ainda: com um retardo de quase um século completamos, enfim, a ‘nossa’ Segunda Revolução Científica e Tecnológica.
Porém, ao lado desses êxitos, diversos problemas foram suscitados ou mesmo ampliados, tais como: o dos desequilíbrios macroeconômicos, distributivos e espaciais. Respectivamente: os primeiros, manifestos no aumento pronunciado da dívida externa e nas tensões inflacionárias, devido o afã de fazer crescimento econômico a qualquer custo – e em acordo com o lema Brasil Potência do regime político-militar de 1964; os segundos, expressos na elevada compressão das taxas de salário, tendo em vista a potencialização da acumulação privada; e, os terceiros, evidentes no reforço da secular ‘assimetria’ regional Norte/Nordeste x Centro-Sul, que tanto caracteriza a formação social brasileira; a perda da oportunidade de colocar pelo menos um dos ‘nossos pés na canoa’ da chamada 3ª Segunda Revolução Científica e Tecnológica, que deslanchava nos países capitalistas centrais (oportunidade essa que não foi perdida por outros países de desenvolvimento retardatários como o Brasil – vide especialmente o caso da Coreia do Sul); e, como consequência, pelo menos em parte, também ocorreu importante perda da oportunidade de internalizar a capacidade de inovação aqui disponível de modo a adensar as chamadas cadeias produtivas etc.
Nos 1980’s, por sua vez, com a curta exceção do período do Plano Cruzado (1986), em conformidade com as orientações emanadas de organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, intencional e subservientemente a política econômica centrada no chamado ajuste fiscal jogou a economia brasileira numa gravosa crise, como sintetizado na conhecida expressão Década Econômica Perdida. Dentre outros problemas se destacaram naquela quadra histórica a queda brutal do PIB e do emprego, a aceleração inflacionária, a deterioração do balanço de pagamento e o avanço da desestruturação da indústria nacional. Não fora suficiente a brutal contração do mercado interno e o abandono das políticas atinentes à industrialização, com a exceção das relativas ao “agrobusiness”, continuamos à margem dos notáveis desenvolvimentos tecnológicos em curso nos países desenvolvidos.
Nos anos 1990, afora a importante contenção da espiral inflacionária através da implantação do Plano Real (1993), a desestruturação da economia brasileira seguiu firme. A esse respeito tenha-se em conta: as baixas taxas de crescimento econômico, a queda da renda per capita, a redução da oferta de empregos, o início da retirada de direitos sociais e trabalhistas estabelecidos previamente (Era Getúlio Vargas, basicamente), o aumento exponencial da dívida externa e da dívida mobiliária, o seguimento firme da desindustrialização e mesmo a volta de pressões inflacionárias (ilustrando: o IPCA dos anos 1999-2002 foi na média de 8,8% a.a.). Em suma: tivemos mais uma década econômica perdida.
Tudo isso se mostra mais inteligível quando se observa a natureza das políticas econômicas então empreendidas em sua imbricação com a própria mecânica do anotado Plano Real. Explicando resumidamente o que veio de ser apontado:

a) o Plano Real possuía como pilar a perspectiva neoliberal e, por tabela, a crença subjacente de que o desenvolvimento viria de fora como expresso na pronta e expressiva liberalização comercial e financeira, na imediata e drástica exposição da indústria nacional à concorrência externa, na evidente redução de recursos para o desenvolvimento científico e tecnológico do país etc.;
b) a âncora cambial, de sobrevalorização do real, levou rapidamente à geração de déficits recorrentes na balança comercial, como também na subconta Turismo do Balanço de Pagamentos. E o que faz o governo diante desse problema? Brandindo o discurso do combate à inflação[i] promoveu importante venda de ativos públicos de maneira a fechar o buraco aberto nas contas externas[ii];
c) a âncora monetária igualmente contribuiu para esse cenário destrutivo. Ora, como os ativos públicos são finitos, dada a sobrevalorização do real e os aludidos buracos abertos (e não cobertos pela iniciativa referida em b) no Balanço de Pagamentos, o governo aumentou as taxas de juros pagas pelos títulos públicos colocados no mercado. A consequência é óbvia: elevação extraordinária da dívida pública e estabelecimento de novos e potentes óbices para o crescimento da economia; e,
d) a âncora fiscal, de corte dos gastos públicos, mais uma vez sob a verbalização da necessidade de conter a demanda agregada para fins de combate à inflação, derrubou definitivamente o crescimento da economia brasileira, quer por conta da brutal retenção e destinação dos recursos disponíveis para o pagamento dos serviços das dívidas interna e externa quer por conta dos sinais negativos/recessivos que essa política transmite para os demais agentes econômicos, notadamente o empresariado privado.

Em suma: depois de um interregno de cerca de três anos os efeitos negativos das referidas âncoras cambial (sobrevalorização do real), monetária (juros altos) e fiscal (corte dos gastos públicos, com a exceção dos estritamente financeiros), todas abrigadas sob o guarda-chuva do neoliberalismo/ subserviência aos ditames dos interesses do centro econômico mundial, logo se tornaram mais amplamente perceptíveis. Afinal, a economia brasileira chegou ao término daquela década com problemas estruturais, agravados, de toda ordem. Reforçando o que já se indicou, tendo mais uma vez o período 1999-2000, os investimentos federais caíram em 2%, o PIB cresceu apenas 2,3%, o consumo das famílias cresceu somente 1,6%, o salário mínimo mísero 1,8% e, como já anotado, até mesmo a pedra de toque do Plano Real, a inflação, atingiu a média de 8,8% a.a.
Resumo da ópera’: em que pese o crescimento econômico dos anos 1970, os governos desses anos legaram para os períodos subsequentes inúmeros problemas estruturais, dentre eles a perda da ‘canoa’ da 3ª Segunda Revolução Científica e Tecnológica (com impactos perversos sobre a indústria nacional) e o agravamento das disparidades sociais e regionais; nos anos 1980, apesar dos notáveis avanços democráticos, a economia brasileira experimentou monumental crise, sublinhando-se a explosão inflacionária, o agravamento das contas externas, a drástica redução do crescimento da renda e do emprego, a piora sensível da questão social e o avanço significativo da desindustrialização; e, nos anos 1990, ‘noves fora’ a estabilização dos preços em patamares civilizados face à barbárie da hiperinflação, tudo o mais de desestruturou. A esse respeito vide particular e destacadamente o aumento vertiginoso da dívida pública e a notável e lamentável subserviência internacional na linha da atualização da dependência do professor Cardoso à chamada globalização neoliberal financeirizada que então emergia com toda força política no centro econômico mundial, em especial nos Estados Unidos e na Inglaterra.

II – A crise estrutural da economia brasileira avança: os anos 2000

Nesses anos, com os governos Lula da Silva (2003-10), houve melhoria sensível dos indicadores econômicos e sociais. Vejamos alguns indicadores; como segue:

Brasil: taxas de crescimento anual (%)

Fonte: Carvalho, L.

Fonte: Carvalho, L. “A Valsa Brasileira”.

Para alguns analistas esse relativo sucesso teria sido devido, cf. a mesma Laura Carvalho: i) ao fator sorte, por conta da situação internacional favorável – leia-se: elevação da demanda externa e dos preços das “commoditties”; ii) à estabilização dos preços e às reformas liberais do assinalado professor Cardoso; e, iii) aos excessivos gastos públicos que teriam, segundo os economistas filiados ao “mainstream” neoliberal, levado ao aumento do consumo agregado, mas sem o devido lastro fiscal. Sem dúvida a referida situação externa favorável, assim como a relativa estabilização dos preços contribuíram para o alcance dos êxitos obtidos. Todavia no que trata das demais assertivas as entendo inteiramente improcedentes; por três razões fundamentais: a) porque não faz nenhum sentido imaginar que as ditas reformas tiveram que esperar cerca de dez anos para suscitar crescimento econômico; b) não faz porque as próprias políticas restritivas da mecânica do Plano Real, como analisado, foram às principais responsáveis pelo travamento do enorme potencial dinâmico da economia brasileira; e, c) porque os gastos públicos não desconsideraram o lastro a que tanto aludem os economistas neoclássicos (vide mais uma vez o livro antes anotado e as anotações que seguem no parágrafo seguinte, item b).
Nesses termos, esclarecendo melhor os apontamentos anteriores, vale assinalar dois comentários: a) que o anotado crescimento econômico apenas ocorreu porque a política econômica dos governos Lula, notadamente no seu segundo mandato, ‘rompeu’ – em certa medida (vide o que segue ,ais adiante) – com a cartilha recessiva’ neoliberal. Três iniciativas governamentais ilustram o que veio de ser assinalado: o aumento dos investimentos públicos, a elevação do crédito popular e a expressiva transferência de renda para os estratos de menor poder aquisitivo da nossa sociedade. Foram elas, enfim, que finalmente destravaram a economia brasileira[i]; e, b) a análise de indicadores diversos (relação dívida /PIB, aumento significativo das reservas cambiais, liquidação da restrição dívida externa etc.) mostra que não houve qualquer ‘irresponsabilidade fiscal’ naquele período, exceto em um caso: o dos expressivos dispêndios com a parcela financeira da dívida pública (mobiliária), dados os juros desnecessariamente elevados praticados pelo Banco Central (presidido na época pelo senhor Henrique Meirelles).
Em resumo: houve naquele tempo histórico a retomada do crescimento econômico, a redução do desemprego, a diminuição da desigualdade social, o equilíbrio das contas públicas (apesar, mas também por causa, do aumento dos gastos graças ao aumento da arrecadação tributária), o importante início do enfrentamento das disparidades regionais, a melhoria das condições ambientais, a conquista de importante respeito ao nível internacional graças à política externa empreendida, a busca incessante pelo fortalecimento das empresas nacionais etc.
No entanto, ao lado desses avanços, ressalte-se que não foram devidamente enfrentados problemas estruturais nevrálgicos herdados dos governos pregressos, tais como: o dos juros altos (desde o piso definido pela taxa SELIC até os praticados pelos bancos comerciais, sejam eles públicos ou privados), o das elevadas taxas de câmbio (extremamente danosas para a indústria nacional e as contas externas), o da sempre postergada reforma tributária de cunho progressivo (que faça os muito ‘ricos’ pagarem mais tributos e permita assim a realização de variadas políticas públicas pelos entes federativos) e a relativa desatenção com o avanço da desindustrialização brasileira[ii] (que impõe limite para o crescimento sustentado do país, em especial pelos ‘gargalos’ que gera na área cambial e na inflacionária).

III – À guisa de conclusão

Nesses termos, independentemente da consideração do raio de manobra político existente, a conclusão a que se chega é que, descontados uns poucos e curtos ciclos expansivos de crescimento econômico, a economia brasileira acumulou nos últimos 40 anos um leque extraordinário de problemas estruturais para resolver e, dessa maneira, poder se lançar na trilha do desenvolvimento sustentado com inclusão social e redução das desigualdades sociais e espaciais – sem deixar de lado a necessária conquista da soberania nacional, sem a qual nada disso se tornará factível.

Notas:

[i] Ou seja, mantidas as políticas recessivas da era FHC certamente a economia continuaria enfiada na recessão econômica ‘eternamente’.
[ii] Em que pese os esforços empreendidos pelo BNDES no sentido de ‘construir’ uma burguesia nacional!
[i] Como se a determinação de preços na economia brasileira, repleta de setores e empresas oligopolistas, fosse feita segundo o modelo neoclássico da concorrência perfeita.
[ii] O discurso que justificava essa política é que as empresas privadas seriam mais eficientes e, por conseguinte, operariam com preços mais baixos. Como sugerido na nota anterior combinam-se aqui à perfeição simplismo analítico e mistificação propositiva.

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