Não é novidade o tema da desigualdade de renda no Brasil uma vez que ela já vem há tempos sendo vista, medida, informada e alardeada a quatro cantos por olhos bem abertos de todos nós. Sinais evidentes são encontrados em situações diferentes e paradoxais entre inúmeros exemplos. De um lado, mendigos, favelados, casebres, trabalhadores sem terra e sem teto, motoboys, biscateiros, e por outro lado, bancos, latifúndios, mansões, bolsas de valores, aviões particulares, carros importados e iates. Enfim por inúmeros contrastes flagrantes entre os que precisam trabalhar para poder comer e sobreviver e os que sobrevivem pelo trabalho de outros para acumular poder e riquezas.
Medidas dessa discrepância gritante são calculadas para se saber e acompanhar a quantas anda a desigualdade ao longo dos anos. Todas elas mostram que nosso país se situa entre os mais desiguais do planeta, onde muitos ganham muito pouco ou quase nada e poucos ganham demais e cada vez mais.
As metodologias para analisar quanto e como se distribui a renda na sociedade se concentram preferencialmente em dois indicadores, os índices de Gini e Theil. Eles mostram quanto as rendas recebidas de cada pessoa, família ou domicílio, individualmente ou agrupadas, estão distanciadas umas das outras ou delas e da renda média de todas juntas. Se próximas as rendas, a desigualdade é menor, se distantes, ela é maior.
Ao se observar uma distribuição de renda, verifica-se que ela é composta de duas séries: uma de rendimentos e a outra de seus detentores (pessoas, famílias ou domicílios). A tabela é a forma mais usual de mostrar a distribuição: numa coluna as faixas de renda e na outra as frequências de cada faixa. Dessa representação, é possível imaginar uma escala ou escada social: os degraus (faixas) diferenciados das rendas, da mais baixa à mais alta, e os detentores (frequências) em cada degrau. Quanto mais detentores ou ocupantes estão nos degraus de baixo, quanto pior a distribuição, pois maior o peso sobre as menores rendas, logo maior a desigualdade; quanto mais ocupantes estão nos degraus de cima, quanto melhor a distribuição, pois maior o peso sobre as rendas mais altas, daí menor a desigualdade.
A visualização dessa escada social ajudou na confecção de duas medidas distintas que refletem, de uma só vez, a estimativa da desigualdade e os pesos nela refletidos dos degraus de renda e de seus ocupantes. As outras medidas conhecidas ainda não usam esse formato.(1)
O que os estudos com as duas medidas indicam sobre a situação em nosso país chega a surpreender. Já era sabido que nos períodos de grande desigualdade de renda, como foi a década de 70, época do chamado “milagre econômico”, os pobres ficaram ainda mais pobres e os ricos ainda mais ricos. O que não se deu conta era que, mesmo em períodos de redução da desigualdade de renda, essa situação regressiva pudesse se manter também ou pouco se alterar.
O período coberto pelos dois estudos vai de 2001 a 2011 com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e de 2008/9 a 2017/18 com os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar, ambas do IBGE, com base nos rendimentos familiares. Nessas duas décadas houve uma redução da desigualdade, a qual foi mais acentuada no primeiro período (2001/11) que no segundo (2008/18), quando se estabiliza. As políticas sociais dos governos do PT (2003 a 2016) foram as responsáveis.
Ainda assim, chama a atenção o fato de que as classes de renda mais baixas (até três salários mínimos) e as classes mais altas (acima de 10 salários mínimos) representaram em torno de ¾ do valor da medida de desigualdade por todo o período. A concentração da renda no país, portanto, se deve praticamente às distâncias de renda e aos pesos dos contingentes mais pobres e mais ricos na escada social – contingente grande de pobres nas faixas mais baixas de renda versus contingente pequeno de ricos nas faixas mais altas de renda. Um abismo de renda separa as famílias brasileiras.
A distribuição mostra que tanto os degraus de renda quanto seus ocupantes tiveram pesos agregados basicamente próximos com ligeiras alternâncias nos perfis de desigualdade em ambos os períodos. As famílias de rendas intermediárias (de 5 a 10 e de 10 a 15 salários mínimos), representantes da “classe média”, foram as que conseguiram alguma melhora de renda ao ganharem rendimentos um pouco acima do que recebiam e/ou subiram alguns poucos degraus na escada social.
A redução da desigualdade se deveu mais, portanto, aos dois grupos intermediários de famílias porque melhoraram de situação em número de detentores de rendimentos e na redução das distâncias entre suas rendas e as das famílias mais ricas.
No entanto, embora variassem as participações dos rendimentos familiares na renda total e dos grupos de familiares em cada faixa de rendimentos nas duas séries respectivas (ou colunas da tabela) durante as duas décadas, existe ainda assim uma visível rigidez na distribuição de renda da sociedade de maneira a dificultar, afunilar e impedir a melhoria de renda das famílias mais pobres e por isso mesmo beneficiar, garantir e manter um padrão nitidamente diferenciado e favorável de renda às famílias mais bem colocadas na estrutura social.
Existe, portanto, um engessamento social e econômico que acompanha a distribuição da renda brasileira seja em momentos de melhoria seja em momentos de piora no nível da desigualdade cujo processo é sempre o mesmo: continuar a relegar e manter os mais pobres nas margens improdutivas da sociedade, liberando espaço e condições para ganhos maiores e crescentes dos ricos.(2)
Notas:
(1) José Carlos Peliano em Movimentos das distribuições de renda: Um estudo de caso no Brasil, 2014, e Desigualdade de renda e movimentos nas distribuições, Brasília, julho de 2021, enviado para publicação.
(2) Sobre esse engessamento, Peliano (2014) indica chegar ele ao mercado de trabalho sob a forma de referenciais de salários por categorias e padrões de estruturas ocupacionais socialmente adotados e aceitos pelos agentes econômicos públicos e privados para contratação de empregados, reproduzindo, assim, o perfil predominante da escada social pelos setores de produção.