Começou nesta terça-feira (22/10/2024), a primeira Cúpula do BRICS com a participação dos novos integrantes (Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos. A Argentina de Millei não aderiu ao bloco). As negociações para reduzir a dependência do dólar no comércio entre os países do bloco, além de medidas para fortalecer instituições financeiras alternativas ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial são dois assuntos que devem ser priorizados. O artigo de José Luís Fiori, mesmo tendo sido escrito um ano atrás, estabelece um marco geral para se compreender o papel deste grupo de países em meio a uma desordem mundial que predomina há décadas.

De forma muito curta e direta: a incorporação dos seis novos membros do BRICS significa uma verdadeira “explosão sistêmica” da ordem internacional construída e controlada pelos europeus e seus descendentes diretos há pelos menos três séculos. Mas seus efeitos e consequências mais importantes não serão imediatos – irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes. Exatamente porque o BRICS não é uma organização militar do tipo OTAN, nem é uma organização econômica do tipo União Europeia. Nasceu como um ponto de encontro – quase informal – e um espaço de convergência geopolítica e econômica entre países situados fora do núcleo central das grandes potências tradicionais, concentradas sobre o eixo do Atlântico Norte. Países que não são atrasados, nem subdesenvolvidos, nem dependentes e que já são, ou se propõem a ser grandes potências econômicas e políticas dentro de seus respectivos tabuleiros regionais. Na verdade, o próprio grupo original do BRICS já inclui três das cinco economias mais ricas do mundo, tomando em conta o seu “poder de paridade de compras”. Chamá-los de “sul global” me parece ser uma forma anódina e geográfica apenas, de renomear os antigos países do “terceiro mundo”, na sua maioria ex-colônias europeias.

Os números estão sendo amplamente divulgados e todos já sabem que depois da incorporação dos seis novos sócios, o grupo do BRICS terá mais de 40% da população mundial e cerca de 40% do PIB mundial, o que, por si só, já fala da importância deste grupo e de sua ampliação, decidida na reunião de Joanesburgo. Agora bem, apesar de o BRICS ter tido até hoje uma postura muito mais propositiva do que contestatória, não há dúvida de que, nos anos recentes, devido à belicosidade crescente entre os Estados Unidos e a China, e devido, principalmente à guerra no território da Ucrânia entre os países da OTAN e a Rússia, o BRICS acabou sofrendo uma mudança de natureza. Tornou-se uma organização de resistência, sobretudo com relação às estruturas e instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados europeus e asiáticos, que operam como verdadeiras armas de guerra nos momentos de intensificação da competição e de acirramento dos conflitos entre esses países reunidos no G7 e os demais países que eles agora chamam de “sul global”, apesar da incorreção geográfica da expressão, uma vez que seu principal inimigo neste momento, a Rússia, encontra-se ao norte de quase todos os países do G7. Seja como for, uma coisa é certa, depois de Joanesburgo, o BRICS já é um ponto de referência incontornável dentro do sistema internacional, e dependendo da reação dos Estados Unidos e dos europeus, poderá se transformar nos próximos anos num grupo de poder com capacidade de estreitar cada vez mais o horizonte do projeto de poder global dos Estados Unidos e seus aliados do G7.

Deste ponto de vista, não há como não perceber que a partir de 2024 o Brics+ estará reunindo alguns dos países detentores das maiores reservas de petróleo e gás do mundo, além de incluir alguns dos seus maiores produtores de grãos e alimentos. Para não falar dos recursos minerais estratégicos que se concentram nesses mesmos países, associados às velhas tecnologias nucleares e às novas tecnologias associadas à computação quântica, à inteligência artificial e a robótica. Mas não há dúvida de que no médio prazo, o maior golpe econômico desferido contra os interesses americanos e do G7 veio de outro lado, mas deverá atingir em cheio o poder monetário e financeiro do dólar e dos Estados Unidos. De fato, a reunião de Joanesburgo não criou uma nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas, de forma discreta, antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os países-membros do grupo e desses países com todas as suas “zonas de influência”. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, e desde o grande acordo firmado entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, logo depois da II Guerra Mundial, quando ficou estabelecida e garantida a intermediação do dólar em todas as grandes operações do mercado mundial do petróleo.

Assim mesmo, apesar do sucesso da reunião de Joanesburgo, a imprensa brasileira tem feito várias críticas ao que teria sido i) uma perda do peso relativo do Brasil dentro do grupo do BRICS; ii) o aumento da presença de países não democráticos dentro do gruo; iii) e, finalmente, o aumento da dependência econômica brasileira com relação à China.

Com relação à perda de peso relativo do Brasil dentro do grupo, devido ao aumento do número de seus membros e do seu “colégio eleitoral”, é necessário chamar atenção para dois aspectos deste problema: o primeiro é que os países membros originários associados ao acrônimo do grupo manterão sempre uma maior presença e peso relativo, pelo simples fato de que são seus “sócios fundadores”. Sendo óbvio, entretanto, que isto dependerá muito de quem sejam seus governantes e do grau do apoio interno e da coesão de que disponham da parte de suas elites econômicas, sociais e políticas. Por outro lado, a diminuição do “peso eleitoral” de cada um dos membros originários do grupo é um preço inevitável a pagar, uma vez que o grupo tenha tomado a decisão, ou tenha sido levado a expandir-se, deixando de ser um mero grupo diplomático ou comercial, frouxo e quase casual, para transformar-se num “grupo de poder” com peso crescente dentro dos fóruns internacionais. Com relação à crítica à polarização entre países democráticos e autoritários dentro do grupo, é importante ter presente é que o BRICS nunca se propôs a ser um grupo de países democráticos, nem muito menos um grupo missionário pregador da fé na democracia. Trata-se de um grupo pragmático e que tem por princípio a ideia chinesa do respeito absoluto pela autonomia política e cultural de cada um de seus membros e dos seus povos.

Por fim, há que lembrar que o Brasil não é o único país do mundo que tenha aumentado seu relacionamento econômico com a China, nestes últimos anos. O mesmo aconteceu com a África, mas também com a Europa e os Estados Unidos. Por isto mesmo, o grande desafio da política externa brasileira neste momento é saber construir uma resposta inteligente, flexível, e o mais consensual possível, de aproveitamento das circunstâncias criadas por esta nova realidade. Exatamente o contrário do que os Estados Unidos estão fazendo, e por isto estão perdendo espaço no mundo, ao se mostrarem incapazes de se ajustar à nova realidade, tentando fazer a roda da história parar ou voltar para trás. (Publicado pelo Observatório Internacional do Século XXI, em set/2023)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “BRICS: como chegar a uma nova moeda de reserva internacional?“, de Paulo Nogueira Batista Jr.