Desde uma conferência na cidade do Porto, em Portugal, em 13 e 14 de junho desse ano, a esquerda europeia (não a centro-esquerda da social-democracia) está formalmente dividida entre o Partido da Esquerda Europeia e a Aliança da Esquerda Europeia. Ainda há conversas e partidos que dialogam com os dois lados, aparentemente, como o Die Linke (o Partido de Esquerda alemão), mas nessa conferência estabeleceu-se uma divisão mais formal, com a criação da Aliança, liderada por partidos como França Insubmissa e Podemos, esse último da Espanha.
As questões vêm se arrastando há anos, evidentemente dialogando com as realidades nacionais de cada um dos países, mas também com um cenário internacional, no qual a guerra da Ucrânia aparece como a parte mais aparente deste iceberg que é muito mais profundo.
A guerra na Ucrânia, como em outras partes, dividiu a esquerda europeia entre aqueles que centraram sua defesa na legislação internacional existente, a qual prevê a soberania dos espaços nacionais existentes (e, portanto, criticam a invasão russa que violou as fronteiras ucranianas). E aqueles que endossaram os argumentos de uma Rússia ameaçada pela expansão da OTAN (e que, portanto, colocam no centro do debate a questão da Ucrânia não aderindo à OTAN e o fato da organização estar se aproximando ainda mais das fronteiras russas). Uma reflexão partindo desse ponto, evidentemente e de forma rápida, aponta para uma velha discussão europeia: a participação na OTAN e, mais no fundo, a questão da segurança europeia.
Discutir a OTAN é discutir um guarda-chuva militar criado e hegemonizado pelos EUA e solidificado no período da chamada Guerra Fria. De acordo com o primeiro secretário-geral da OTAN, o general inglês Hasting Ismay, mais conhecido como Lord Ismay, em frase famosa proferida logo na sequência da fundação da organização criada em 1949, o objetivo central do Tratado do Atlântico Norte poderia ser resumido em: manter “the Americans in, the Russians out, and the Germans down” (em uma tradução livre, manter os americanos dentro, os russos fora, e os alemães embaixo, ou submissos).
Evidente que o mundo mudou muito desde 1949, e talvez, especialmente em relação aos alemães, a Europa se consolidou na União Europeia, conseguindo se coesionar por cima de velhas e históricas diferenças. Mas quando se olha de uma perspectiva já da terceira década do Séc. XXI, permanecem as pretensões de manter os americanos dentro (inclusive com seus soldados e suas bases militares) e os russos fora, através de um cordão fronteiriço de segurança entre a Rússia e os países europeus. Isso vale tanto para governos dos EUA mais negociadores e simpáticos com os europeus (como os de Obama e Biden), quanto para governos mais conflitivos e exigentes, como o de Trump. E tem evidentemente, a questão dos custos altos, inclusive com a manutenção da OTAN em Bruxelas, da qual os estadunidenses nem sempre estão dispostos a se bancar como sócios majoritários (Trump, por exemplo, exige grande ampliação do gasto militar dos europeus).
Então, essa discussão sobre a defesa europeia não é simples para a esquerda europeia. Além do mais, envolve temas bastante complicados. A exigência estadunidense de um aumento dos gastos militares europeus para 5% do orçamento, o que já está sendo aprovado em alguns países, já abre um debate mais complexo, mesmo entre a direita europeia, se isso deve representar um incremento do aporte dos países europeus à OTAN, ou se deve se dar para encorpar um sistema de defesa europeu mais autônomo.
A ampliação do gasto militar, como tem se mostrado em alguns países, envolve uma importante questão relativa à compra de material militar: se as encomendas devem ser feitas aos produtores europeus (muitos são grandes fabricantes de armas, como os que vêm de histórias mais militaristas, como França e Reino Unido, e os que adotam um discurso mais pacifista, como a Suécia) ou às empresas dos EUA – um provável objetivo de Trump para ativar a economia dos EUA.
Levanta também uma discussão relevante sobre o que fazer com os orçamentos nacionais: se o aumento do gasto militar deve ser feito na forma de déficits, ou se deve representar o encolhimento de parte do gasto atualmente feito. Na Bélgica, por exemplo, poucas semanas depois de anunciar o aumento dos gastos militares para 5% do orçamento, o governo local anunciou – como se as coisas não tivessem relação – a discussão de uma nova mudança no sistema previdenciário para promover a redução de custos.
Finalmente, existe a questão dos jovens: aumentar os gastos com defesa implica também aumentar o efetivo militar, isto é, aumentar o recrutamento de jovens europeus, que em muitos países não estão muito dispostos a se incorporar às forças armadas. Sobre todas essas questões, a esquerda europeia terá que se posicionar, e já está se posicionando nos debates em vários países, o que está levando a inevitáveis tensões.
No fundo, existe uma forte discussão sobre uma geopolítica em transformação, o papel da Rússia, mas fundamentalmente da China (que disputa a hegemonia com os EUA), e também o papel da Europa neste novo quadro. O tema da segurança é o que está vindo à tona de forma mais explícita pela cobrança dos EUA, mas evidentemente, envolve economias e outros assuntos. Tudo isso vem dividindo a esquerda europeia (assim como a direita) e faz parte de uma agenda de presente e futuro que vai ajudar a definir um mundo em disputa nos próximos anos.
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Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “O Senhor da Guerra e a Pax Americana”, de Halley Margon.