Para que servem os impostos de importação? Fonte de renda?
Instrumento de barganha com os parceiros comerciais?
Proteção da indústria nacional? Eles são um pouco de todas essas coisas
e ao mesmo tempo nenhuma delas. E essa confusão na aplicação de tais
impostos ao mundo deve prejudicar o crescimento dos EUA ou, até
mesmo, causar uma recessão.
Niall Ferguson

Trump e sua equipe resolveram redesenhar a economia doméstica dos EUA e, também, onde possível, a internacional, com profunda revisão do neoliberalismo e da globalização que, por décadas, foram as bandeiras norte-americanas, testemunhando um crescimento de 4.400% do comércio global de 1950 a 2023.  Agora, teria chegado a hora de trazer de volta para os EUA os investimentos, a produção industrial e o domínio tecnológico.

Scott Bessent, secretário do Tesouro dos EUA, na sua apresentação no FMI, comentou sobre a nova estratégia de política comercial dos EUA. Fez um histórico desde as instituições fundadas por Breton Woods, citando o choque do dólar no governo Nixon em 1971 e esclareceu que da década de 70 em diante, os EUA conquistaram um poder hegemônico no mundo, mesmo estando no vermelho, com permanentes déficits fiscal e comercial. Acontece que, nos dias de hoje, essa situação não é mais sustentável, já que existe uma enorme desproporção entre a hegemonia do dólar e a situação real da economia dos EUA. É necessário reequilibrar o volume de dólares no mundo com o volume de produção de bens da economia americana.

Daí a necessidade, segundo eles, de implementação de tarifas sobre as importações do resto do mundo (em especial daqueles países superavitários no comércio com os EUA, criando uma proteção ao mercado interno), da desvalorização do dólar para fortalecer as exportações norte-americanas, da redução dos impostos para os empresários e investidores, do alongamento da dívida pública americana e da criação de um fundo de reserva composto por ouro, bitcoins e outros ativos para proporcionar segurança à liquidez da economia.

Tanto Scott Bessent como Stephen Miran (membro do Council of Economic Advisers), apontam para o papel crucial dos EUA na guerra comercial e para um redesenho da ordem econômica internacional. Resumidamente, o plano consiste em:

  • Plano 3-3-3: Meta ambiciosa de redução do déficit fiscal de 6,4% para 3% do PIB, crescimento anual do PIB de 3% a.a. e produção de petróleo de 3 milhões de barris por dia.
  • Política Tarifária: Utilização de tarifas como instrumento diplomático, comercial e fiscal, com o devido cuidado com os efeitos das mesmas na inflação.
  • Reformas Reguladoras: Corte nas exigências bancárias e modernização do sistema financeiro.
  • Gestão da Dívida: Planos para ajuste do perfil da dívida (US$ 3,4 trilhões de obrigações futuras), e potencial eliminação do teto da dívida.

Lembremos que, em 1971, a administração Nixon desmontou o sistema monetário criado em Breton Woods. Nas décadas de ouro do pós-guerra, nos anos 50 e 60, os EUA garantiam a paridade de US$ 35 por cada onça de ouro depositada no Fort Knox, o que no fundo era um jogo de cena. Esse foi um longo período de estabilidade tanto das taxas de juros como das taxas de câmbio, que eram fixas (pegging rates). Na década de 70, o dólar passou a ser a única referência, desvinculado de qualquer relação com o ouro. E tanto a Europa como o Japão tiveram de engolir essa nova imposição dos EUA e seu equilíbrio instável, tendo ocorrido uma desvalorização acentuada do dólar.

Na época, também houve a imposição ao mundo pelos EUA de tarifas de importação de 10%, muito semelhante ao que está acontecendo nos dias atuais. Tais medidas pararam de pé, com a continuidade da hegemonia da moeda norte-americana, graças ao acordo dos EUA com Arábia Saudita e outros países árabes, capitaneado por Henry Kissinger, para a comercialização do petróleo exclusivamente em dólares (petrodólares).

As medidas tomadas recentemente pelos EUA, chacoalhando o mundo, nada mais são do que uma tentativa de reequilibrar os Twin déficits norte-americanos, que mostram que os EUA se financiam por disporem da moeda hegemônica do planeta, sem respaldo na sua economia real.

A pergunta é: como preservar a hegemonia do dólar como reserva de valor e moeda de referência internacional à luz da existência desses déficits? Aumentaram muito as preocupações sobre a sustentabilidade fiscal e a vulnerabilidade externa da economia dos EUA, especialmente em um contexto de políticas comerciais incertas e desequilíbrio comercial e fiscal.

Nesse contexto, as tarifas cumpririam um primeiro passo para buscar reestruturar as cadeias de comércio e suprimento, recalibrando o peso relativo do complexo industrial e militar norte-americano na economia mundial, o que precisa ser feito com a ajuda de um dólar desvalorizado. Tem-se notícia de que os capitais internacionais já começaram a ser mobilizados na direção dos EUA, incluídos aí capitais alemães, franceses, japoneses, coreanos, taiwaneses e americanos, dentre outros, que esperam contar com as prometidas benesses fiscais.

Medidas de força dos EUA estão sendo adotadas em diversas frentes. A dissuasão de investimentos no exterior é uma delas, inclusive com interferência financeira no mercado de capitais em países estrangeiros (China, por exemplo), orientada por interesses geopolíticos dos EUA. Tais medidas prejudicam claramente os interesses econômico-financeiros legítimos das instituições americanas, misturando interesses políticos com as suas decisões de investimento. Wall Street deixa assim de operar livremente nos mercados globais, afetando o livre fluxo de capitais de risco. Hong Kong passa a ser um mercado suspeito de favorecer os interesses chineses. Foi traçada uma linha vermelha, típica de interferência da guerra fria no mercado internacional de capitais.

Em reação, alguns países já começaram movimentos de venda de reservas americanas e a priorização de ativos não denominados em dólar, como o ouro, bonds de infraestrutura emitidos pelo BRICS e dívidas denominadas em yuan. Já está em construção um ecossistema financeiro fora do dólar, com muitos recursos tendo sido carreados para títulos soberanos do Japão.

Outra reação em curso é o desinvestimento nos EUA das empresas chinesas listadas na bolsa de Nova Iorque, que já estão avaliando fechamentos de capital em virtude das incertezas que as cercam. A ideia é a gradativa substituição de Wall Street pelo mercado de Xangai, que começa a ter relevância para os investimentos de capitais asiáticos e do Oriente Médio.

Também ganharam relevância as operações internacionais entre os países do BRICS, todas efetuadas nas suas próprias moedas e fora do sistema de pagamentos SWIFT, utilizando o Cross Interbank Payment System, que é o sistema de pagamentos criado pela China. Existem sinais claros de que haverá uma redução gradativa da dependência do dólar no mundo. Novos mercados e formas de comércio se abrem, sem sanções, sem tarifaços, sem intromissão geopolítica.

A indução à repatriação de investimentos está em discussão no Senado dos EUA, onde avaliam medidas legais e fiscais de convencimento dos investidores americanos a repatriarem seus capitais, afetando 220 empresas chinesas consideradas tecnologicamente sensíveis e estratégicas, nas áreas de defesa, inteligência artificial, biotecnologia e telecomunicações. Trata-se de um verdadeiro controle de capitais que, segundo a Bloomberg Intelligence, se eleva a US$ 812 bilhões de investimentos em fundos de índices, fundos de pensão, capitais privados e investimentos em empresas estrangeiras (ADRs –American Depository Receipts).

Essas discussões para indução à repatriação de investimentos estão inseridas no contexto da revisão de disposições fiscais que expiram no final de 2025, conforme estabelecido pela Lei de Cortes de Impostos e Empregos (Tax Cuts and Jobs Act – TCJA), de 2017. Se tais medidas forem aprovadas, grandes empresas americanas como Black Rock, Goldman Sachs, entre outras, teriam até 12 meses para se desfazerem de suas posições. É a política dominando as decisões empresariais de investimentos. Isso, se for adiante, mudará a cara do mercado financeiro norte-americano em termos de liberdade de ação, confiabilidade, liquidez, etc. Se isso acontecer, ele nunca mais será o mesmo.

Trump está impondo os EUA sobre o resto do mundo e ao mesmo tempo afastando-se de seus aliados. Alguns exemplos: imposição de tarifas diretas e secundárias, deportação de imigrantes, boicote à pesquisa científica e tecnológica das universidades, saída do acordo de Paris, saída da OMC, guerra comercial com a China, ameaças de intervenção militar, etc.

A administração Trump acredita firmemente que a interdependência contemporânea entre os países aumenta a força dos EUA para impor suas políticas devido ao poder de compra de seu enorme mercado. O fato de a interdependência entre os países ser assimétrica confere vantagens aos países menos dependentes, o que é o caso dos EUA. Apesar do enorme déficit comercial dos EUA com a China, ainda assim, Trump acredita que o significativo volume de importações provenientes da China empoderam os EUA.

Segundo os autores Robert O. Keobane e Joseph S. Nyle Jr, em seu artigo The End of the Long American Century, publicado na Foreign Affairs, de julho/agosto/25, nos últimos 80 anos os EUA acumularam soft power com base na atração e não na coação ou imposição de tarifas. Para eles, políticas externas eficazes deveriam impulsionar as interdependências entre os EUA e o resto do mundo, que fortalecem tanto o hard power, através do significativo poder de compra (coerção e pagamentos), como através do soft power (poder de atração pela tecnologia e serviços). Romper com as normas que regem a estabilidade de poder e a confiança entre os países é deletério a curto e longo prazo para os EUA. Os países superavitários são intrinsicamente vulneráveis a eventuais medidas dos EUA devido aos seus próprios superávits. Para a China, por exemplo, com sua taxa de três vezes mais exportações do que importações, uma eventual retaliação é mais complicada, já que tem de alcançar as cadeias de investimento americanos no país, interrompendo fornecimentos estratégicos (Apple, Boing, Nvidia, minerais raros, etc.). Fica claro, portanto, que as políticas externas dos países variam dependendo do contexto geopolítico e dos padrões de assimetria nas interdependências entre eles. A globalização é irreversível, não tem volta. E é pura miopia não ver que o poder e a força dos EUA repousam na interdependência.

Coação de aliados pode ter efeitos de curto prazo, mas, certamente, trará prejuízos no longo prazo, principalmente no que se refere à confiança na interdependência, fator chave nas cadeias de suprimento hoje existentes no planeta.

Apesar das pesquisas ainda indicarem uma preferência dos países pelos EUA, a China vem ganhando espaço principalmente no “sul global” para o que a truculência do governo Trump contra a globalização tem contribuído bastante.

E qual a probabilidade de tais políticas alcançarem os resultados desejados? Países dão certo não pela manipulação de suas taxas de câmbio, controle de importações, sanções e imposições sobre seus pares, jogo de interesses, lobbies, etc., mas sim, pela pesquisa científica, avanços tecnológicos, educação, investimentos produtivos públicos e privados, cuidados com o meio ambiente, dentre outras questões. Nada disso está sendo feito nos EUA. Existe uma crença equivocada de que se pode voltar no tempo e re-industrializar, num estalar de dedos, de forma verticalizada, setores hoje obsoletos, o que é totalmente equivocado.

O déficit comercial dos EUA tem origem nos quase 7% de déficit fiscal do país, que vive pendurado no cartão de crédito do exorbitante privilégio do dólar, permitindo captar recursos a taxas favorecidas e continuar rolando a dívida, sob a égide da irresponsabilidade fiscal dos dois partidos e de uma pesada máquina de corrupção e de contribuições ilícitas de campanha. O déficit comercial de US$ 1 trilhão anual é causado pelo déficit fiscal anual de US$ 2 trilhões. Mas nenhum dos dois partidos abre mão do déficit fiscal, pois isso implicaria não no corte de impostos, mas sim, na necessidade de taxar mais os bilionários.

As tarifas, muito mal concebidas, não serão eficazes, pois todas as indústrias norte-americanas dependem da importação massiva de produtos intermediários que se inserem nas cadeias de produção global. Assim, as tarifas, em lugar de contribuírem, ocasionarão incerteza e destruição da produção. E o cenário fica mais confuso ainda se houver cortes de impostos e aumento dos gastos militares, pois os cortes de gastos levados a cabo pelo governo têm sido insuficientes; pura encenação. Ora, implementar a política de tarifas e desvalorizar o dólar num contexto de significativo déficit fiscal, causará um aumento da inflação e das taxas de juros. Trata-se, assim, de uma política incoerente, instável e sem qualquer suporte político, além de inconstitucional.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “O jogo de poder da Doutrina Trump”, de Luiz Martins de Melo.