O câmbio usado como arma contra o governo e sua política econômica

A disparada do dólar estadunidense a partir do final de novembro foi usada como um mecanismo para emparedar o governo e sua política econômica. Segundo o próprio Banco Central do Brasil (BCB), o mercado de câmbio com entrega escritural ou física de moeda estrangeira no Brasil é formado pelo segmento primário – operações de exportações, importações, entradas e saídas financeiras – e acessível a qualquer pessoa física ou jurídica, e pelo segmento interbancário, no qual operam apenas os agentes autorizados pelo BCB.

Os principais participantes do mercado de câmbio local são, além do próprio BCB, bancos, corretoras de câmbio, empresas, fundos de investimento locais e investidores estrangeiros. A estimativa para 2016, feita pelo BIS (uma espécie de banco central dos bancos centrais do mundo) é que o mercado diário de câmbio no Brasil fosse algo como US$ 7 bilhões, valor similar ao da Turquia e México. Assim, é um mercado razoavelmente pequeno, e por isso mesmo, bastante afeito a servir de termômetro a movimentos especulativos. O principal efeito de subidas bruscas do valor de moedas estrangeiras é a pressão sobre a formação futura dos preços, já que a economia brasileira é bastante aberta às importações, e os preços dos produtos que exportamos, alimentos incluídos, também ficam dolarizados (como é o caso de carnes, soja, café e outros).

Como dito pelo Banco Central, ele próprio é um dos principais participantes no mercado de câmbio no Brasil, talvez o maior. E, lembrando, dos três principais instrumentos clássicos de política econômica (política monetária, política cambial e política fiscal), os dois primeiros se encontram sob controle do BCB, independente desde 2022. Assim, caberia ao banco agir no sentido de controlar movimentos especulativos contra a taxa de câmbio no país.

Vale observar que desde a primeira metade dos anos 1990, o país abriu sua conta de capitais, liberalizando as movimentações de moeda internacional, entrando e saindo no Brasil. Essa abertura levou a momentos de forte especulação contra a moeda nacional, como em 1998/1999, quando o real foi derrubado por forte ataque especulativo, e a âncora cambial, base inicial do Plano Real, teve que ser substituída pelo chamado “tripé macroeconômico” (superávit primário, juros vinculados à política de metas de inflação e câmbio flutuante). Em 2002/2003, um novo forte ataque especulativo contra a moeda nacional levou à evasão de divisas e a novo acordo com o FMI (como havia sido feito em 1998/1999). A liberalização dos movimentos de capital mostrou-se uma enorme fragilidade, e deixou o país a mercê do poder dos especuladores internos e externos.

Essa situação levou o novo governo estabelecido a partir de 2003, com Lula à frente, a buscar antídotos para evitar ficar nas mãos de movimentos especulativos. O principal deles foi acumular, a partir das exportações, um grande volume de reservas internacionais (entre US$ 350 bilhões e US$ 400 bilhões) para sinalizar aos especuladores que o Banco Central teria bala na agulha para confrontar os movimentos especulativos com o dólar.

Além disso, a partir de 2014, no âmbito dos BRICS, foi firmado um acordo conhecido como Arranjo Contingente de Reservas (CRA, no acrônimo em inglês). Os bancos centrais dos membros do grupo (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, àquela altura), decidiram funcionar de forma consorciada, se protegendo em conjunto de movimentos especulativos contra suas moedas. Na prática, isso significava que qualquer movimento contra as moedas desses países obrigaria os especuladores a medir forças com o triliardário banco central chinês, o qual serviria de escudo aos demais países membros do grupo. Assim, foram estabelecidos ao menos dois poderosos instrumentos para tentar garantir as defesas frente a movimentações especulativas contra a moeda nacional.

Entretanto, a partir de 2022, o BCB tornou-se legalmente independente, e seu presidente e diretores passam a ter mandatos. Deixou, portanto, de ser parte do governo, configurando-se como uma agência autônoma que se move a partir de objetivos definidos pelo Senado – o qual aprova os nomes de presidente e diretores – e por diretrizes emanadas do Conselho Monetário Nacional (composto pelos Ministérios da Fazenda, do Planejamento e pelo próprio BCB).

A operacionalização das políticas monetária e cambial no curto prazo é decisão do próprio Banco Central. Nos eventos a partir de novembro, o banco optou pela inação, deixando a especulação correr, só alterando essa visão na semana imediatamente anterior ao Natal. Ao deixar o dólar disparar, fez com que o Ministério da Fazenda (e a política fiscal, a única das tradicionais ainda em poder do Executivo) fique encurralado frente aos especuladores, que tinham como principal objetivo exatamente enquadrar a política fiscal do Executivo.

A disparada do dólar serviu para o mercado financeiro passar uma imagem de descontrole da situação econômica, em especial dos preços. Nesse período em que grandes empresas transnacionais remetem recursos para suas matrizes, o que caracteriza um forte componente de demanda sobre moeda estrangeira, abrem-se ainda mais caminhos para os movimentos especulativos. A pressão levou o Ministério da Fazenda a sucessivas propostas de ajuste fiscal, nenhuma delas satisfazendo plenamente a sanha de cortes do mercado financeiro.

Nessa virada de ano também, de fato, tomou posse o novo presidente do Banco Central, agora indicado pelo Governo Lula, já na metade do seu mandato. O novo presidente, que já atuava como diretor do Banco Central, se comprometeu com as decisões de subida dos juros a partir de meados de 2024. Mas não se sabe ainda sua orientação sobre os movimentos especulativos contra a taxa de câmbio, os quais têm sido utilizados exatamente, para emparedar a política fiscal do Executivo federal. É o que começaremos a ver a partir de agora. Se o Banco Central contribuir, e utilizar os instrumentos que têm à disposição para confrontar a especulação cambial, o Executivo federal ganha graus de liberdade para operar a política fiscal. Caso contrário, teremos mais turbulência pela frente.

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Ilustração: Mihai Cauli 

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