Em seu artigo publicado na Folha de São Paulo de 23 de agosto deste ano, Luiz Felipe Pondé se mostra muito irritado com o que chama de aristocracia da pandemia. Aristocracia composta por todos aqueles que o irritam: cientistas empolgados sem noção da realidade, pessoas que se isolaram em casas de praia e campo, aqueles que elogiaram a atuação da Nova Zelândia e Islândia no enfrentamento da pandemia e pessoas com poucos filhos que comem alimentos orgânicos vindos da Suécia (sic). Esta aristocracia o irrita porque não entende nada e despreza os mais pobres, a quem supostamente chama de gente horrorosa, ao contrário do autor, obviamente.

O aristocrata da pandemia não entende que as pessoas querem ir aos shoppings e comer em restaurantes, não entende que os pobres precisam sair e mandar seus filhos para a escola para se alimentarem. Cientistas não sabem que há um mundo além de seus microscópios e acham que todos comem brioches. E essa aristocracia não entende porque é, obviamente, ignorante. Não sabe nada de história, não sabe que já passamos por pandemias e que a humanidade sobreviveu.

Aqui nos propomos a dissecar esta fantasia e expor um provável motivo do seu fatalismo.

Vamos começar falando bem do texto. Embora não seja novidade alguma, Pondé é certeiro ao apontar que a pandemia colocou um holofote sobre o abismo de desigualdade que existe no mundo. Os pobres, de fato, estão muito mais vulneráveis à pandemia e as merendas de escolas públicas são uma fonte imprescindível de alimentos para a maioria de seus alunos. Além disso, ele acerta ao repetir os cientistas sociais quando dizem que os mais ricos estão mais preparados para enfrentar quarentenas e isolamento social. Igualmente, boa parte consegue exercer suas profissões em home office e nutre uma, diga-se de passagem, histórica indiferença às agruras dos mais pobres.

Mas essa exposição indignada do Pondé em relação à vulnerabilidade dos pobres é um truque. Um mero teatro em defesa da política bolsonarista de não enfrentamento da pandemia, no qual Pondé começa com um estratagema retórico que mistura, sem a menor justificativa ou traço de pudor, cientistas e a classe abastada indiferente e alienada da sociedade. Como um médico louco, ele junta estas partes para criar um monstro – a aristocracia da pandemia e tal qual o outro médico louco, passa a perseguir sua criatura ao longo de seu artigo.

A necessidade deste monstro retórico fica clara, pois é ele que sustenta o seu tão estereotipado e baixo ataque aos cientistas, todos eles, claro, de ocasião e embriagados com a fama. Não gasta nenhuma palavra para mencionar todas as informações que estes cientistas levaram ao público ávido por qualquer luz que pudesse ser lançada sobre a nova doença, que ceifava vidas aos milhares em países da Europa. Pondé reduz esse serviço público e toda a revolta pelo descaso de Bolsonaro em clichês paupérrimos como “torcida pelo vírus” e “esculhambar como a doença foi combatida nos EUA e no Brasil”.

Nesta massa retórica disforme, que Pondé tenta empurrar goela abaixo do leitor, o cientista é um privilegiado, desinformado sobre as dificuldades impostas pela pobreza. No entanto, Pondé omite o fato de que relatórios científicos são exatamente os que demonstram como a doença afeta desigualmente a população, sendo muito mais letal e prevalente entre os mais pobres, tanto pela condição de suas moradias, quanto por seu local de trabalho, pelo imediatismo de suas necessidades econômicas e natureza de seus empregos, que os levam a se expor no transporte público. Afinal, os mais pobres também compõem a imensa maioria dos trabalhadores dos serviços essenciais. Eles são a maioria dos enfermeiros e serventes que estão em contato direto com a doença nos hospitais. Além disso, quando adoecem, suas chances de sobreviver são bem menores.

Crianças e adolescente da periferia de São Paulo, por exemplo, com síndrome respiratória aguda grave, chegam a morrer 13 vezes mais. Mesmo com todo esse quadro já bem conhecido, Pondé pontifica, aparentemente, sem seu característico sarcasmo, que as crianças pobres devem voltar logo para a escola e liberar suas mães para o trabalho. Chamamos a atenção para uma das primeiras mortes no Rio de Janeiro pela Covid-19, a de uma empregada doméstica que contraiu a doença de sua patroa que havia voltado da Itália.

Pondé também ataca os países que combateram eficientemente a pandemia, especificamente, a Islândia e a Nova Zelândia (interessante notar que são países governados por mulheres), justificando seu sucesso pelo fato de serem ilhas com pequenas populações. No entanto, ignora o caso do Vietnã, país pobre com 97 milhões de habitantes que faz fronteira com a China e que, com poucos recursos, mas com medidas enérgicas de rastreio, quarentena e isolamento, conseguiu manter, até o dia 25 de agosto, o número de 1.029 infectados e 27 mortos. Sua retórica seletiva ignorou também dezenas de países que enfrentaram dificuldades no início, mas contiveram a pandemia e a mantiveram em níveis aceitáveis, como Itália, França e a própria China. Fizeram isto seguindo o consenso científico.

O filósofo afirma, ainda, que uma das marcas de sua fictícia aristocracia é esculhambar a forma de “combate” à pandemia adotada por Brasil e EUA mas que, em uma aparente contradição, ela evitaria falar mal da Suécia que, como os outros dois países, não teria feito lockdown. Brasil e Estados Unidos são desastres epidemiológicos sob qualquer métrica. Dizer que existem países piores em mortes por milhão de habitantes é uma justificativa nula e pérfida. Os casos do Brasil e dos EUA devem ficar nos anais da epidemiologia mundial como exemplos de negligência criminosa. Agora, fica a dúvida: será que Pondé considera a Suécia um caso de sucesso? Os cientistas, certamente não. O economista Rodrigo Zeidan, também constante colunista da Folha, comparou os números dos países nórdicos e a Suécia teve a pior queda de PIB e quase seis vezes o número de mortes por milhão. Então, definitivamente, não houve nenhum resultado bom em se ignorar, na fase inicial de contágio exponencial da Covid-19, o consenso científico de lockdown.

Pondé deixa clara a motivação política de sua diatribe em uma frase em que tenta diluir nas profundezas da história a atual crise sanitária. Afirma, baseando-se em um historiador, que a humanidade enfrenta localmente, como pode, pestes e guerras, comparação que não surpreende, uma vez que o olhar global e a cooperação entre nações, o dito globalismo, é um anátema para a direita conservadora. Por alguns momentos, transparece a impressão, inclusive, dada a falta de propostas, que o enfrentamento a uma pandemia deva ser feito como foi o da peste negra na Idade Média, ou como fez Trump nos EUA – esperando um milagre.

116.666 mortes até o dia 25 de agosto. E daí? Números não interessam a Pondé, o que interessa é a perspectiva histórica. Filhos de homo sapiens e primos de neandertais (não corroborado pela paleo-antropologia) morrem mesmo em cada peste. Pondé é filósofo, com “percepção de história de longa duração”, e não coveiro! Isso passa

No finalzinho do texto, Pondé afirma que a pandemia causada pelo SARS-COV2 morrerá e será esquecida (afinal, o que seriam alguns milhões de pessoas a menos?). Há dúvidas sérias sobre a primeira parte de sua profecia, pois é possível que a doença se estabeleça na humanidade como uma endemia sazonal, semelhante à influenza. A segunda parte é mais provável, afinal, a população precisa seguir a vida e os políticos precisam se reeleger. No entanto, uma parte do Monstro de Pondé não se esquecerá e fará de tudo, como fez antes, para que a próxima pandemia não seja como esta: os cientistas.

Ao desvalorizar cientistas, ao esquecer que a real aristocracia brasileira (não a criação dele) votou massivamente no presidente eleito, ao fechar os olhos para os dados, ao desconhecer o assunto de maneira tão brutal e, mesmo assim, se posicionar, ao optar pelo argumento falacioso e, explicitamente, rastejar para catar as migalhas deixadas pelos leitores olavistas que apoiam o governo, Pondé fez uma triste escolha: deixou de ser filósofo. Continua exercendo cargo e portando título, mas se esqueceu da essência do mister e da própria etimologia da palavra.