Uma esquerda que tenha como seu único horizonte de expectativas a “manutenção da ordem” frente às ameaças regressivas, estará fadada a perder seu sentido estratégico.

Ganhou repercussão uma recente entrevista publicada na Folha de SP com Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP e importante quadro da esquerda brasileira, onde, numa manchete provocativa, ele afirma que a “esquerda morreu e extrema direita é única força real no país”. Voltadas à divulgação de seu novo livro, as afirmações de Safatle na Folha provocaram acalorados debates. Ainda que nas redes sociais tenha prevalecido comentários críticos baseados apenas na manchete, desconsiderando o conjunto da entrevista, o efeito de ter estimulado uma discussão sobre a condição da esquerda, em si, é positivo e necessário.

Em um sentido literal, é um tanto óbvio que a esquerda brasileira não morreu, ainda mais em um momento que o país tem o Lula na presidência da República. Sua afirmação certamente possui um sentido alegórico, apontando para uma crise da esquerda. Para além de seus diagnósticos, que adiante comentaremos, Safatle provoca um necessário debate sobre a condição e a identidade da esquerda nesta atual conjuntura histórica. Nos últimos tempos, o esforço de autorreflexão da esquerda é menos praticado do que se deveria. Não nos referimos aqui às famosas autocríticas, que nos últimos tempos são encaradas muitas vezes como uma espécie de purgação dos pecados cometidos ou mesmo atribuídas de forma espúria por adversários. Mas sim a um esforço de análise mais profunda, sobre a própria condição existencial da esquerda no século XXI.

Este é um esforço necessário e estratégico para a esquerda, mas não apenas no Brasil, mas em uma dimensão global. Esta não é uma situação nova, a percepção de uma crise da esquerda não vem de hoje. Em boa medida ampara-se num processo de estigmatização do ideário transformador, de um fechamento da história, onde o capitalismo coloca-se como a única alternativa, na esteira da derrota do projeto socialista no final do século 20, com o fim da União Soviética. A hegemonia neoliberal que se estabeleceu promoveu uma onda avassaladora de retrocessos, de múltiplos efeitos, que estamos ainda muito longe de um ponto de superação. Sem uma alternativa robusta a lhe servir de contraponto, o neoliberalismo se converteu na nova racionalidade do mundo, como apontam Pierre Dardot e Christian Laval, passando assim a condicionar até mesmo a própria esquerda.

A “novidade” política recente foi a ascensão da extrema direita, colocando-se como uma alternativa deturpada à ordem neoliberal. Ainda que não rompam com nenhum dos fundamentos centrais do neoliberalismo, adotam uma retórica que busca mobilizar o descontentamento popular com os efeitos das políticas de austeridade para um caminho conservador de “volta ao passado”, com molduras fascistizantes. Fenômeno político que tem sido apontado como um dos sintomas da crise das democracias, sua força é notável em muitos países. A derrota de Bolsonaro no Brasil abreviou um processo regressivo que muitos países têm enfrentado, como é o caso da Hungria, Israel, Itália, El Salvador, entre outros. A Argentina recentemente passou a integrar esta lista e nos EUA, um possível retorno de Trump não é nada improvável.

Neste quadro geral em que as “regras do jogo” são ditadas pelo neoliberalismo, e tendo os novos fascismos como uma força capaz de polarizar a política, Safatle acerta ao apontar que estaríamos em um momento histórico que não seria mais de retração de expectativas, mas algo pior “um horizonte de retração de enunciação”, onde faltaria a capacidade de até mesmo ousar falar algo fora dos estreitos limites da ordem do capital, onde ele questiona, provocativamente “quantas vezes você ouviu, nos últimos dez anos, a ideia de autogestão da classe trabalhadora?”.

Mas quando expõe de uma forma que praticamente particulariza estes retrocessos como específicos do Brasil, e não como efeitos sintomáticos da crise ontológica da esquerda, Safatle perde muito de seu rigor crítico, recaindo em obliterações analíticas e certos idealismos. Para sustentar sua “tese” de que a “esquerda está morta”, afirma, por exemplo, que “a extrema direita é hoje a única força política real do país, porque é a força que tem capacidade de ruptura, tem estrutura e coesão ideológica”, comete quase que um chiste, dada as inconsistências de sua conclusão.

Pela forma como o bolsonarismo é descrito por Safatle, estaríamos diante de um partido bolchevique redivivo, com um sentido político trocado, mas a mesma capacidade organizativa revolucionária, quando na verdade temos algo um tanto distante disto. Caso a extrema direita contasse com este nível de organização desenhada, a intentona golpista de 8 de janeiro de 2023 não teria tido o seu malfadado desfecho. Pulverizado em diversos partidos de direita, o bolsonarismo sequer conta com uma sigla comum, condição mínima para permitir alguma coesão organizativa. Em termos ideológicos, a direita radical é disforme e contraditória, onde preconceitos e ódio de classe são o que permitem algum nível de coesão.

Por outro lado, a crítica de Safatle acerta ao constatar que a direita radical é a única força política no Brasil com uma prática discursiva “revolucionária”, no sentido de propor uma ruptura com “o que está aí”, apostando em um processo de mobilização social permanente de sua base. O que temos, assim, é um cenário de polarização desequilibrada, pois não existe uma força política de esquerda no Brasil equivalente à extrema direita. Não temos uma esquerda radical que se expresse com alguma relevância social. Num rápido exercício comparativo, uma prova eloquente disto é a ausência da violência armada como forma tática para a tomada do poder no repertório da esquerda. Aqui não me refiro a exercícios teóricos que consideram ou defendam a violência revolucionária em termos idealizados ou retóricos, mas em uma práxis que reivindique a ação violenta como uma forma legitima.

Se é um fato que a esquerda brasileira não está morta, também é perceptível que ela perdeu sua ofensividade. Incapaz de apontar uma alternativa ideológica que não seja uma mera mitigação dos efeitos mais perversos do neoliberalismo, suas principais conquistas neste último período tem sido de desacelerar ou barrar retrocessos. Neste momento de resistência, com poucos espaços para avanços, não é irrelevante impedir, por exemplo, que a democracia prevaleça contra uma alternativa ditatorial. Mas sabemos também que uma esquerda que tenha como seu único horizonte de expectativas a “manutenção da ordem” frente às ameaças regressivas, estará fadada a perder seu sentido estratégico. A continuidade deste estado de coisas poderá sim transformar a alegoria da “morte das esquerdas” em uma condição factual. A este alerta devemos estar atentos. (Publicado no Sul 21, em 09/03/2024)

Clique aqui para ler a entrevista de Vladimir Safatle à Folha de São Paulo.

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Ilustração: Mihai Cauli  
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