Demétrio Magnoli parece ainda não ter assimilado a fragorosa derrota pessoal e política no tema das cotas, que foram implementadas e tiveram grande êxito, e insiste em retomar o tema por outros meios. Ele escreveu um artigo na Folha de São Paulo, em 29/10/2021 (“Esquerda Universitária”), que é espantoso.
O que me preocupa não é a opinião do Magnoli em si, mas discursos semelhantes ao dele em setores das esquerdas, como se as chamadas “pautas identitárias” (detesto esse termo) fossem inimigas das pretensões políticas e eleitorais da esquerda.
Nesses setores de esquerda, uns acreditam que os temas “identitários” afastam um eleitorado conservador em costumes, mas próximo nas pautas econômicas e sociais, outros, com visão menos eleitoral, entendem que as lutas dessas minorias pulverizam as lutas do mundo do trabalho. Entendo como equivocadas essas visões e o artigo de Demetrio Magnoli é um bom ponto de partida para debater esse tema.
Magnoli começa o artigo mencionando que a Câmara de Nova York removeu de suas instalações a estátua de Thomas Jefferson, um dos “pais fundadores” do EUA e autor intelectual da notória declaração de independência americana. A estátua foi removida porque Jefferson foi dono de escravos, assim como cinco dos sete principais artífices da independência americana.
Dessa ação, que pode e deve ser debatida, no contexto americano, ele parte para apresentar uma pesquisa cujos resultados são o centro do artigo, por isso cito textualmente:
- “A revista The Economist (27.out) (…) sintetiza a mudança nos padrões de voto segundo o nível educacional dos eleitores entre 1950 e 2010.
Em cinco das seis democracias analisadas (EUA, Reino Unido, Alemanha, França e Nova Zelândia), verifica-se uma tendência histórica implacável: o deslocamento para a esquerda dos mais escolarizados e um deslocamento simétrico dos menos escolarizados. (…)
No passado, entre as décadas de 1950 e 1970, os partidos de esquerda e centro-esquerda controlavam majoritariamente o voto da população de menor nível educacional – ou seja, da classe trabalhadora.
Por outro lado, os partidos de centro-direita e direita venciam largamente entre as camadas de maior escolaridade – ou seja, na classe média e na elite. O padrão inverteu-se na década de 1990 e continua a infletir em curva acentuada: o diploma universitário tornou-se o maior indicador estatístico do voto à esquerda.”
A conclusão de Magnoli em relação à pesquisa da The Economist é que o eleitorado da esquerda migrou da classe trabalhadora para a classe média porque a esquerda só defende as pautas identitárias, enquanto a extrema direita domina os votos nos antigos redutos da esquerda.
Magnoli conclui o artigo fazendo uma ligação (torta) com nossa realidade. Transcrevo novamente:
- “O Brasil não se encaixa no gráfico dos deslocamentos eleitorais. O PT resistiu às intempéries porque – ao contrário do PSOL – só adotou as pautas identitárias como adereços secundários, usados em dias festivos. Sob o timão de Lula, persistiu no discurso do Estado-Protetor, agarrando-se aos estandartes do populismo econômico.”
Cito, nesse trecho final, apenas a parte que considero relevante para os propósitos deste artigo, porque, repito, essas ideias encontram eco para além do conturbado pensamento magnoliano. Partindo de uma boa premissa ele chega a uma conclusão absolutamente descabida, que parece sedutora a alguns ouvidos nas esquerdas, e até do centro político.
Enxerguei três erros nas constatações do Magnoli. O primeiro é o fato dele transpor, sem nenhum filtro, a realidade dos países ditos desenvolvidos para o Brasil, como se nossas minorias não fossem completamente diferentes das deles, ao menos assim me parece.
Com exceção dos EUA, no restante do mundo desenvolvido o problema fundamental é a imigração (que também é um problema americano). No Brasil, lembro que a população negra é maioria numérica, assim como as mulheres. Contudo, temos percentualmente muito menos universitários negros do que nos EUA (onde 15% da população é negra), para apresentar apenas um dado. A representatividade das mulheres no parlamento federal no Brasil está além do 100º lugar no mundo, atrás de Ruanda, Etiópia e ditaduras religiosas misóginas como Arábia Saudita. Somos o País que mais mata a população LGBTQIA+, ao menos onde há estatísticas confiáveis.
Questiono, o que a esquerda deve fazer diante desses dados que dizem respeito à maioria da população brasileira? Nada? Essa visão do Magnoli talvez defendesse que uma hipotética esquerda, lá no século XIX, silenciasse sobre a escravidão para não gerar temor nos brancos, eleitores potenciais, de que seus salários e empregos seriam prejudicados por ter mais gente disputando espaço. Convenhamos, foco errado.
O segundo erro é que Magnoli esquece que a esquerda sempre apoiou as pautas políticas das minorias, ainda que com tom universalista. Foram os socialistas e sociais-democratas mundo afora que apoiaram o movimento sufragista feminino, vinham deles também a aversão ao antissemitismo na Europa, até o Stalinismo tinha como política oficial combater o antissemitismo, profundamente arraigado na população local.
Os judeus que, na Europa da primeira metade do século XX, militaram na política, inclusive contra o antissemitismo generalizado, encontraram um lugar nos partidos da esquerda política, não na direita. O mesmo podemos dizer dos pioneiros militantes políticos do movimento que hoje é denominado LGBTQIA+.
Não estou esquecendo que esses temas tiveram muitos problemas nas esquerdas, houve resistências, ainda há, enormes, cada uma do seu modo particular, apenas constato que não foi a direita e os conservadores que acolheram, ao menos inicialmente, essas demandas, foi a esquerda, com todas as suas contradições.
Abandonar as pautas das minorias é negar a história e a essência universalista da esquerda, fora que abrirá espaço para a direita e sempre haverá aqueles dispostos a fazer a defesa das minorias políticas apartando-a das questões econômica, social e cultural. Pode ocorrer aqui coisa semelhante que a pesquisa da The Economist identificou em relação à classe trabalhadora do mundo desenvolvido, que migrou eleitoralmente da esquerda para a extrema direita.
Agora, chego àquele que considero o principal erro do artigo de Magnoli. Não foram as “pautas identitárias” da esquerda que facilitaram a ascensão da extrema direita na classe trabalhadora do mundo desenvolvido, foi o fato de as esquerdas europeia e americana terem abraçado o neoliberalismo.
A extrema direita usa politicamente as pautas das minorias, mas arrisco dizer que isso só tem efeito eleitoral hoje porque a esquerda do mundo desenvolvido se rendeu lá atrás e aceitou a nem tão lenta degradação do estado do bem-estar social. Se a esquerda daquela parte do mundo perdeu inserção social foi por não ter enfrentado o discurso econômico fiscalista e liberalizante, não por defender imigrantes ou outras minorias, isso é apenas a consequência esperada da escassez, que é filha do neoliberalismo.
Como diz o ditado, “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Se não tem empregos, ou se eles são precários, para os trabalhadores autóctones, se os filhos deles estão sem perspectivas de futuro, como aceitar imigrantes? Responder essa pergunta de maneira simples (“fora com todos os imigrantes”) foi o que, principalmente, fortaleceu a extrema direita nos países desenvolvidos.
A esquerda do mundo desenvolvido abandonou o debate da economia política e facilitou a entrada do discurso fácil da extrema direita, que mira no que é visível e não tem que explicar nada muito complexo.
A questão no Brasil é diferente em muitos aspectos, mas os modos como a extrema direita atua, nem tanto. Lá como cá ela quer fragmentar o debate político, principalmente com argumentos mentirosos, e Magnoli aceita esses termos, assim como alguns na esquerda e no centro. Joguemos ao mar e não falemos das minorias políticas, das “pautas identitárias”, pensam, esquecendo-se que por aqui as minorias são a maioria numérica da população.
A extrema direita quer fazer um hipotético cidadão do interior do Texas (identificado pelos algoritmos) que defende armas, mas acredita na importância da intervenção econômica do Estado e até nada tem contra imigrantes, votar no candidato deles o fazendo acreditar que o adversário vai proibir o rifle. Por aqui, quer fazer o fiel evangélico acreditar que a esquerda vai obrigar o filho dele a não ter sexo definido até a adolescência, o que o apavora, ainda que ele acredite que o governo deva intervir para criar empregos e ajudar os mais pobres.
Não somos pré-definidos em receitas, somos incoerentes, com idiossincrasias, conhecemos melhor um assunto do que outros, temos ou não crenças religiosas, valoramos as coisas de forma diferente, disso resulta que identificar a opinião de um cidadão sobre um tema não permite automaticamente saber o que ele pensa sobre um outro. A extrema direita entendeu isso e encontrou uma tecnologia que a permitiu explorar os medos e anseios de cada um, de forma personalizada.
Não digo que não devemos nos preocupar e agir contra essa tática direitista anárquica, mas apenas combater “fake news” em um debate político fragmentado é muito pouco, quem fica na defensiva perde a batalha política na sociedade e perde eleições.
A esquerda tem que insistir ou retornar, depende do caso, para o leito do universalismo e isso inclui a defesa das minorias, não pode cair na armadilha da fragmentação.
Sempre haverá novos fantasmas e medos a serem infundidos em uma população fragilizada economicamente e sem acesso ao necessário e esquecido debate da economia política, o qual não demanda erudição do ouvinte. Certas questões fundamentais do debate social e econômico são compreendidas até por crianças em tenra idade e é isso que a direita teme.
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Ilustração: Mihai Cauli
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