A falta de opções ao consenso neoliberal parece ser o grande drama do nosso tempo. Como diria Gramsci, numa época em que o velho claramente está morto, mas o novo ainda não nasceu, caberia às forças políticas comprometidas com a mudança apontar os novos caminhos. A esquerda hoje, entretanto, padece de uma profunda crise de identidade. Perdida no labirinto do seu passado, vaga sem encontrar a saída para o seu futuro.
Desde 1791, quando os revolucionários que defendiam mudanças mais radicais para a França, se assentaram à esquerda do Presidente na Assembleia Nacional, as forças políticas comprometidas com a ideia de tornar o mundo mais justo e igualitário passaram a ser conhecidas como “a esquerda”. Conforme registrou Norberto Bobbio, enquanto a liberdade individual seria o mote da chamada “direita”, a igualdade seria o seu cavalo de batalha.
A consolidação da hegemonia burguesa consagrou o liberalismo e fixou a noção do indivíduo como sujeito de direitos e da liberdade como valor supremo. A construção do arcabouço jurídico que os garantia, entretanto, não foi capaz de superar as imensas desigualdades sociais que impediam que a maioria pudesse deles usufruir. Para a esquerda ficava claro que, sem uma igualdade efetiva, direitos eram pura formalidade e a liberdade degenerava na simples dominação dos fracos pelos fortes. As tentativas de trazer à luz essa igualdade, muitas vezes à fórceps, marcariam a esquerda – e as reações, muitas vezes cruentas, da direita.
Essa primeira fase da esquerda teve o cenário francês como palco e as várias expressões do socialismo dito utópico como ideologia. A derrota na guerra franco-prussiana e o esmagamento brutal da comuna de Paris em 1871, bem como, a popularização do marxismo, deslocaram o eixo de gravidade da esquerda para a recém-unificada Alemanha.
A socialdemocracia alemã se tornaria o paradigma da esquerda e, refletindo o pensamento de Marx, efetivaria o proletariado como protagonista da História. Na última década do século XIX, seus estrondosos sucessos eleitorais – a despeito da repressão policial – fariam Engels afirmar, em 1895, que o “uso bem sucedido do direito de voto universal efetivou um modo de luta bem novo do proletariado e ele foi rapidamente aprimorado”, “assim ocorreu que a burguesia e o governo passaram a temer mais a ação legal que a ilegal do partido dos trabalhadores, a temer mais o sucesso da eleição que o da rebelião”. É o momento em que surge o debate entre reforma e revolução, conduzido por Bernstein e Rosa Luxemburgo, ensaiando o cisma que viria com a Primeira Guerra Mundial.
Com efeito, a Grande Guerra jogaria a esquerda na sua definitiva encruzilhada. Desde os tempos do Manifesto Comunista de 1848, passando pela Primeira Internacional – criada pelos próprios Marx e Engels em 1864 e dissolvida pelo conflito entre socialistas e anarquistas, em 1876 –, o internacionalismo era princípio basilar da esquerda. A ideia de que um operário alemão tinha mais em comum com seu homólogo francês do que com seu patrão, era a justificativa da revolução mundial. Não obstante, quando as tensões europeias fizeram o conflito iminente, os socialistas na Alemanha e na França não resistiram aos tambores da guerra e passaram a apoiar as respectivas mobilizações. Não por outra razão, o quatro de agosto de 1914 – data em que o partido socialdemocrata alemão, maioria no Reichstag, aprovou os fundos para a guerra – é tido com a data do óbito da Segunda Internacional, organização criada em 1889 e que representava a hegemonia da socialdemocracia alemã na esquerda mundial (seu fim seria oficializado em 1916).
Em novembro de 1917, a facção bolchevique do partido socialdemocrata russo, liderada por Lênin e Trotsky, tomou o Palácio de Inverno e, com ele, o poder na Rússia. A revolução russa, que o jornalista norte-americano John Reed descreveria como “os dez dias que abalaram o mundo”, foi a colossal gota d’água para a divisão irreconciliável da esquerda entre partidos socialistas/socialdemocratas e partidos comunistas (que se reuniriam na Terceira Internacional, fundada em 1919, e extinta por Stalin em 1943, num sinal de boa vontade aos Aliados).
Os partidos socialistas/socialdemocratas herdariam as visões reformistas que conduziriam os ideais sociais e, já no segundo pós-guerra, construiriam os estados de bem-estar social na Europa (sobretudo na Escandinávia); os partidos comunistas levariam a bandeira de uma utópica sociedade sem classes, lutariam a Guerra Fria e sustentariam as ondas de descolonização e libertação nos países do Terceiro Mundo. O protagonismo do que seria a esquerda anticapitalista seria, agora, russo/soviético (e, em menor medida, a partir da década de 1950, chinês).
A esquerda anticapitalista ainda sofreria vários abalos, entretanto. Em 1929 Trotsky, o fundador do Exército Vermelho, seria expulso da URSS marcando o início da era stalinista, cujos crimes Nikita Khrushchev denunciaria, em 1956, diante de um consternado XX Congresso do PCUS. Stalin, o Guia Genial dos Povos, campeão contra o nazismo, havia trucidado milhões nos Gulags, durante os expurgos da década de 1930.
Não obstante, o mundo que havia emergido da Segunda Grande Guerra estava muito mais à esquerda do que antes. Basta pensar em Herbert Marcuse escrevendo, em 1955, sobre o “capitalismo tardio” em Eros e Civilização. Nos anos 1960 com a revolução sexual, a contracultura, o movimento Black Power e o Maio de 68. Nos importantes avanços sociais e nos marcos regulatórios que, nesse período, foram implementados até mesmo por governos e regimes conservadores, inclusive, ditaduras militares. A própria esquerda institucionalizada se viu objeto de severa contestação por grupos que procuravam formas alternativas de participação política ou que, simplesmente, rejeitavam qualquer política institucional.
A despeito do inflamado ímpeto contestatório, estava em vigor um paradigma que enfatizava uma noção caríssima à esquerda: a de que era preciso promover o bem estar da coletividade, uma vez que, a prosperidade de cada um estava intrinsicamente relacionada à prosperidade de todos. Se isso era óbvio para as sociedades que aspiravam ao comunismo, para as socialdemocracias significava que aqueles que usufruíam da maior parte da riqueza produzida socialmente também detinham a maior parte da responsabilidade social. Na economia política esse paradigma se identificou com o pensamento de Keynes e deu sustentação ideológica aos chamados Trinta Anos Gloriosos.
Grosso modo, portanto, até a década de 1990, ser de esquerda significava optar entre duas economias políticas: uma marxista-leninista, construída sobre a abolição da propriedade privada e dos mercados, tendo como instância de participação política um partido único; outra, pretendendo um capitalismo reformado, com propriedade privada dos meios de produção e mercados altamente regulados, sindicatos fortes, estado de bem estar social e participação política através de instituições da democracia liberal.
A chamada revolução conservadora nas democracias liberais do Ocidente, a partir de 1979, e, dez anos depois, a debacle do socialismo real no leste europeu, começando com a queda do muro de Berlim e culminando com o fim da URSS, implodiram as visões de mundo da esquerda. Não só a alternativa comunista ao capitalismo desmoronou espetacularmente; mas a própria ideia socialdemocrata de um sistema capitalista reformado passou a ser considerada anacrônica, incapaz de dar respostas adequadas aos novos desafios econômicos.
As tentativas de construção de uma terceira via, que constituísse uma alternativa ao neoliberalismo, mas, ao mesmo tempo, que se diferenciasse da socialdemocracia tradicional – cujo melhor exemplo foi o New Labour do britânico Tony Blair – ao fim e ao cabo, se mostraram pouco mais que rendições condicionais ao neoliberalismo e à financeirização da economia.
Emasculada de seus ideais revolucionários e destituída de qualquer intenção relevante de reforma do capitalismo, a esquerda se viu sem roteiro e também sem atores. A destruição da organização sindical, a desterritorialização das empresas e a precarização do trabalho roubou à esquerda o seu habitat natural. Diferente da classe trabalhadora que Marx viu no século XIX – e que se manteve, mais ou menos, até os anos 1970 –, a classe trabalhadora do século XXI encontra-se altamente fragmentada, desorganizada e gregária. Cada indivíduo é seu próprio capital, em permanente competição com todos os outros, devendo aproveitar as oportunidades que apareçam, onde e como aparecerem, e enquanto existirem. O “colaborador” é a sentença de morte do “trabalhador”.
O paradigma neoliberal não é apenas um credo que amaldiçoa qualquer intromissão do estado na economia como indevida. Ele parte do pressuposto de que ideia de “sociedade” é falsa – quando não perigosa – porque apenas o indivíduo existe. Portanto, apenas os interesses individuais podem, de fato, ser razoavelmente estimados e levados em consideração. As desigualdades sociais se justificam pelos méritos individuais de cada um; qualquer tentativa de remediá-las é não só inútil, mas, sobretudo, imoral. A justiça social é um mito criado por sonhadores ou espertalhões, destinado a produzir mais mal do que bem, fazendo com que aqueles que produzem tenham que sustentar preguiçosos e perdulários.
Não é difícil percebermos o darwinismo social latente nessas ideias. Mas, enfrentar um mundo insolidário não é, de forma alguma, novidade para as forças políticas que sempre pretenderam mudá-lo. Novidade, no entanto, é enfrentá-lo sem ideias, sem o lenitivo de qualquer utopia, sem um horizonte na direção do qual seguir. Já cantava Elis em Agnus Sei: só quem tentou sabe como dói, vencer Satã só com orações.