O déficit público (gastos superiores à arrecadação do governo) aumenta a nossa “poupança” coletiva. Mas o que acontece se o governo pedir emprestado quando ele tem um déficit? Isso consome recursos e força o aumento das taxas de juros? A resposta é não.

A teoria convencional que norteia toda a grande mídia divulga que há um suprimento fixo de “poupança” do qual qualquer um pode tentar pedir emprestado. Esse conceito está enraizado na ideia de que os empréstimos são limitados pelo acesso a recursos financeiros escassos. Essa é base da teoria dos fundos emprestáveis que deve ser rejeitada completamente.

Os déficits fiscais do governo sempre levam a um aumento de real por real na oferta de ativos financeiros líquidos mantidos pelo setor privado. Essa não é uma noção teórica. Não é uma opinião. É a realidade da contabilidade consistente com o registro das operações financeiras derivadas da relação entre o estoque de ativos e passivos públicos e privados e o fluxo gerado por essa interação.

Portanto, os déficits fiscais – mesmo com empréstimos do governo – não podem deixar para trás uma oferta menor de “poupança” em reais. E se isso não pode acontecer, então não há uma poupança menor em reais responsável por aumentar os custos dos empréstimos. Claramente, isso representa um problema para a teoria convencional do crowding-out, que afirma que os gastos do governo e o investimento privado competem por um conjunto finito de poupança.

A teoria dos fundos emprestáveis é, em muitos aspectos, nada além de uma abordagem em que a taxa de juros dominante na sociedade é, pura e simplesmente, concebida como nada mais do que o preço dos empréstimos ou crédito, determinado pela oferta e demanda, da mesma forma que o preço do pão com manteiga em uma padaria do interior. Na teoria tradicional dos fundos emprestáveis – conforme apresentada nos principais livros didáticos de macroeconomia – a quantidade de empréstimos e crédito disponíveis para financiar o investimento é limitada pela quantidade de “poupança” disponível. A poupança é a oferta de fundos emprestáveis, e o investimento é a demanda por fundos emprestáveis e presume-se que esteja negativamente relacionado à taxa de juros.

Há muitos problemas com a apresentação e formalização padrão da teoria dos fundos emprestáveis. Primeiro, a história causal contada para explicar as identidades contábeis indica que a poupança define o investimento. A história do capitalismo oligopólico mostra que não é tanto a taxa de juros na qual as empresas podem tomar empréstimos que determina causalmente a quantidade de investimento realizado, mas, sim, são seus fundos internos (lucros retidos), as expectativas de lucro (demanda) e a proporção da utilização da capacidade que definem a tomada de decisão em investir.

Segundo, como é típico da maioria das formalizações e modelos macroeconômicos convencionais, na teoria dos fundos emprestáveis há muito pouca menção a fenômenos do mundo real, como, por exemplo, dinheiro real, racionamento de crédito e a existência de múltiplas taxas de juros. A teoria dos fundos emprestáveis essencialmente reduz as economias monetárias modernas a algo semelhante aos sistemas de troca (escambo), o que definitivamente não são. Para entender e explicar quanto investimento/empréstimo /crédito está a ocorrer em uma economia é muito mais importante focar no funcionamento dos mercados financeiros do que olhar para identidades contábeis como S (poupança) = Y (renda) – C (consumo) – G (gastos do governo). Os problemas que encontramos nos mercados modernos hoje têm mais a ver com instituições financeiras inadequadas do que com o tamanho da “poupança” de fundos emprestáveis.

Terceiro, a teoria dos fundos emprestáveis na abordagem “neokeynesiana” significa que a taxa de juros é endogeneizada assumindo que os Bancos Centrais podem (tentar) ajustá-la em resposta a um eventual hiato do produto. Isso nada mais é do que uma suposição de que os mercados são autoreguláveis e que a obtenção do equilíbrio é garantida pelos ajustes das taxas de juros dos Bancos Centrais. Do ponto de vista realista, isso não pode ser considerado outra coisa senão uma crença que se baseia em nada além de pura esperança.

Quarto, um outro problema na teoria tradicional dos fundos emprestáveis é que ela pressupõe que a poupança e o investimento podem ser tratados como entidades independentes. Ela parece supor que, se a curva de demanda por capital se deslocar ou se a curva que relaciona a taxa de juros com os valores poupados de uma dada renda se deslocar, ou se ambas as curvas se deslocarem, a nova taxa de juros será dada pelo ponto de interseção das novas posições das duas curvas. Mas esta é uma teoria sem sentido. Pois a suposição de que a renda é constante é inconsistente com a suposição de que essas duas curvas podem se deslocar independentemente uma da outra. Se qualquer um deles mudar, então, em geral, a renda mudará; e o resultado é que todo o esquematismo baseado na suposição de uma determinada renda se desfaz. Na verdade, a teoria clássica não tem estado atenta à relevância das mudanças no nível de renda ou à possibilidade de o nível de renda ser realmente uma função da taxa do investimento.

Há sempre duas partes (pelo menos) em uma transação econômica. Poupadores e investidores têm preferências de liquidez diferentes e enfrentam escolhas diferentes – e suas interações geralmente ocorrem apenas intermediadas por instituições financeiras. Isso, o que é importante, também significa que não existe um mecanismo automático de juros “direto e imediato” em ação nas economias monetárias modernas. O que acaba acontecendo é que um acontecimento no nível microeconômico nem sempre é compatível com o resultado macroeconômico. A falácia da composição (a “falácia atomística” de Keynes) tem muitas faces – fundos emprestáveis são uma delas.

Quinto, ao contrário da teoria dos fundos emprestáveis, as finanças no mundo real precedem o investimento e a poupança. A falácia dos fundos emprestáveis fica clara porque o aumento do investimento será sempre acompanhado por um aumento da poupança, mas nunca poderá  preceder a ele. O entesouramento e a expansão do crédito não fornecem uma alternativa ao aumento da poupança, mas uma preparação necessária para ela.

O que é “esquecido” na teoria dos fundos emprestáveis é a percepção de que as finanças – em todas as suas diferentes formas – têm sua própria dimensão e, se levadas a sério, seu efeito em uma análise deve modificar todo o sistema teórico e não apenas ser adicionado como um apêndice não sistemático. As finanças são fundamentais para nossa compreensão das economias modernas e agir como o aprendiz de padeiro que, tendo esquecido de adicionar fermento à massa, joga no forno depois, simplesmente não é suficiente.

Todas as atividades econômicas reais hoje em dia dependem de uma máquina financeira em funcionamento. Mas arranjos institucionais, estados de confiança, incertezas fundamentais, expectativas assimétricas, sistema bancário, intermediação financeira, processos de concessão de empréstimos, riscos de inadimplência, restrições de liquidez, dívida agregada, flutuações de fluxo de caixa, etc., etc. – coisas que desempenham papéis decisivos na canalização de dinheiro/poupança/crédito – são mais ou menos deixados no escuro nas formalizações modernas da teoria dos fundos emprestáveis.

Outra grande falácia é a afirmação de que incentivar ou fornecer incentivos para que os indivíduos tentem economizar mais estimula o investimento e o crescimento econômico. Poupar não cria “fundos emprestáveis” do nada. Não há presunção de que o saldo bancário adicional do poupador aumentará a capacidade de seu banco de conceder crédito em mais do que a capacidade de fornecimento de crédito do banco do vendedor será reduzida. Com recursos desempregados disponíveis, a poupança não é um pré-requisito nem um estímulo, mas uma consequência da formação de capital, pois a renda gerada pela formação de capital fornece uma fonte de poupança adicional.

As falácias analisadas antes confluem para a maior de todas: a de que o endividamento do governo deve “expulsar” o investimento privado. A realidade é o contrário. O gasto superior às receitas fiscais gerará renda disponível adicional, aumentará a demanda pelos produtos da indústria privada e tornará o investimento privado mais lucrativo. Enquanto houver muitos recursos ociosos por aí e as autoridades monetárias se comportarem de maneira sensata, ao invés de tentar combater o efeito supostamente inflacionário do déficit fiscal, aqueles com perspectiva de investimento lucrativo podem obter financiamento. Nessas circunstâncias, cada gasto adicional de déficit induzirá, no médio e longo prazo, dois ou mais gastos adicionais de investimento privado. O capital criado é um incremento na riqueza de alguém e na “poupança” de alguém. “A oferta cria sua própria demanda” (Lei de Say) falha assim que parte da renda gerada pela oferta é economizada. Porém, o investimento cria sua própria poupança e muito mais. Qualquer crowding out que possa ocorrer é o resultado, não da realidade econômica subjacente, mas de reações restritivas inadequadas por parte de uma autoridade monetária em resposta ao déficit.

Portanto, eliminar essas fraudes conceituais da política econômica é um passo importante para evitar o voo da galinha que nos aflige desde que o Plano Real estabilizou os preços. As principais farsas divulgadas pelos adeptos da teoria (neo)liberal são:

  1. O governo deve levantar fundos por meio de impostos ou empréstimos para poder gastar. Em outras palavras, os gastos do governo são limitados por sua capacidade de tributar ou tomar empréstimos.
  2. Com déficits fiscais, estamos deixando o fardo da dívida para nossos filhos.
  3. Déficits orçamentários do governo levam poupanças embora.
  4. A Previdência Social está quebrada.
  5. Precisamos de poupança para fornecer fundos para investimento.
  6. Déficits maiores hoje são ruins porque significam impostos maiores amanhã.

Qualquer semelhança com a política macroeconômica dos últimos 30 anos não é mera coincidência.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Dominância fiscal, o apocalipse da vez“, de Paulo Kliass.