Ana Elisa é estudante engajada nos movimentos sociais. Usa pronomes neutros e denuncia racistas que falam “criado mudo” ou “esclarecer as coisas”. Um dia, um colega lhe disse que esclarecer não tinha a ver com branco e preto, mas com claro e escuro. “Racista!”, disse olhando com cara de nojo.

É feminista radical. Publica nas redes imagens de mulheres fortes e frases sobre solidariedade feminina, mas não ajuda a mãe que, sozinha, limpa a casa, cozinha e trabalha à noite. Sua mãe, Maria Emília, nem pede mais ajuda. Resignou-se com isso e tudo mais. Não tem tempo para se preocupar com os discursos da filha quando é contrariada porque o almoço não estava bom. Ou com as frequentes omissões e traições do marido. Conforta-se com os cultos de sua igreja aos domingos.

Há dois anos Maria convenceu o marido a acompanhá-la aos cultos. Tinha esperança de que, convertido pela religião, se convertesse em bom marido. Na igreja ele conheceu a última de suas amantes. Só não teve um filho com ela porque a convenceu a abortar. Sem esperança na conversão do marido, contentou-se com as caronas dele para o culto dominical.

João Abelardo fez muitos amigos na igreja, mais até do que a esposa que, ao contrário dele, reza mais do que conversa. Foi lá que se engajou em grupos políticos, outra coisa que lhe era tão estranha quanto a religião. Tornou-se frenético nas redes sociais espalhando fake news e criando teorias conspiratórias a partir de fotos e falas do presidente ou de algum general.

Depois do resultado das eleições, João não hesitou em mudar-se para um acampamento em frente a um quartel do Exército. Sentiu-se importante por lutar contra fraudes das urnas eletrônicas, a conspiração comunista para tornar todos gays e o Foro de São Paulo, que quer criar a URSAL. Na verdade, João não sabe ao certo o que nada disso significa, mas ele não está lá por razão alguma, mas pela sensação de importância, pela convivência com os amigos de militância e pela amante.

A posse de Lula foi um marco para a família. Ana Elisa comemorou com as amigas de militância. Deu até uma festa em casa para comemorar. Sua mãe levou três dias para limpar tudo. Apesar da trabalheira, Maria também estava aliviada com o resultado das eleições. Otimista por princípio, viu no resultado a esperança de seus cultos voltarem a ser mais preocupados com Jesus e menos com Bolsonaro.

João não se entristeceu muito com o resultado das eleições. Nem com a posse, ainda que acreditasse que ela não aconteceria. No fundo, gosta da vida no acampamento. Gosta da presença mais frequente da amante e da outra que conheceu numa excursão a Brasília para impedir a posse de Lula.

Está decidido a manter-se acampado mesmo depois da posse. Mesmo depois de minguado o acampamento. Mesmo depois de a amante ter descoberto a traição dele. Mesmo depois de a esperança ter vencido o ódio, João mantém a esperança de que o ódio, num golpe iminente, faça perecer toda esperança.

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Ilustração: Mihai Cauli

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