Na rua suja e fedorenta, o padre e a deputada se toparam.

Uma pequena multidão se enfileirava, por hábito, à espera de comida. Alguns voluntários estacionavam carrinhos repletos de marmitas enquanto outros improvisavam uma bancada com pedaços de madeira e lençóis encardidos.

– Quantos viciados vai atender hoje, padre?

– Não sei dizer. Não contamos viciados. Para nós, são pessoas. E também não contamos pessoas. Contamos as marmitas que servimos, mas só depois de servidas. E sempre falta.

– Mas, padre, o senhor não acha que isso prejudica essas pessoas? Que as acomoda aqui, neste antro de crimes?

– Penso que dar comida as alimenta.

– O senhor não está me levando a sério! – Disse a deputada, se levando a sério.

Alheios à conversa, os voluntários distribuíam os alimentos. Um dos famintos sentou-se no meio-fio bem perto deles e começou a comer mais atento à conversa que à comida.

– Acho que é o contrário, a senhora é que não está levando nosso trabalho a sério.

– Eu acho que o seu trabalho aqui ajuda o crime. Não é certo alimentar essa gente no vício.

– Nós não as alimentamos no vício. Nós as alimentamos na fome. E elas não estão aqui por causa do alimento. O alimento é que está aqui por causa delas.

– Ajudaria muito mais se o senhor e seus voluntários convencessem essas pessoas a se tratarem e procurarem os abrigos.

– E você acha que sem comida seria mais fácil convencê-las? Você acha que quem largou tudo por causa da dependência largaria a dependência por causa da fome?

– Padre, as pessoas que trabalham e moram aqui já não aguentam mais essa situação.

– As pessoas que trabalham e moram aqui querem os dependentes longe daqui. E para onde acha que eles iriam? Para outro lugar onde possam alimentar seu vício. Neste lugar também haverá pessoas que não as querem por lá. No final, o problema é este. Ninguém quer estas pessoas de jeito nenhum. Nem aqui, nem ali, nem acolá. Nem alimentada e nem faminta. Querem que desapareçam na prisão, abrigo ou cova. Qualquer lugar, desde que seja invisível. Nós damos comida porque as vemos.

A deputada irritou-se e encarou o infeliz que comia e sorria sentado perto dela. Ele desviou o olhar e abaixou a cabeça, quase afundando o rosto na comida.

– Você!

Não olhou de volta. Curvou-se um pouco mais e acelerou as garfadas, como se tentasse se enterrar na marmita.

– Estou falando com você! Achou engraçado?

– Moça, quando a gente tem fome, a barriga dói. Depois, quando a fome aumenta, deixa de doer. E aí vem a fraqueza que dói cada hora num lugar diferente da gente. Mas o pior é o que a fome faz na cabeça. Não saber quando vai ter comida ou se vai ter o que comer é pior que a dor de barriga da fome. É desespero. Tem dia que eu não consigo a marmita. Mas pelo menos eu sei que o padre vai voltar no dia seguinte e isso não deixa o desespero bater. Não tire isso da gente não, moça. – Disse sem levantar a cabeça.

A deputada saiu pisando duro e resmungando que aquela situação precisava ser discutida com seriedade.

– Precisamos discutir com compaixão… – Disse o padre para o nada.

Veja aqui matéria na BBC sobre o episódio em que a deputada Janaína Paschoal critica o padre Júlio Lancellotti por doar comida a moradores da Cracolândia.
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