Estivera no exílio. A ditadura, por sua constituição fascista e pelo terror que espalha, leva muitas pessoas comprometidas com seus princípios e com suas liberdades individuais a buscar o exílio de maneira voluntária. Assim houve com intelectuais, artistas, pensadores, cientistas, escritores, músicos. Partiram por escolha. Suas atividades profissionais não eram possíveis, ou, ainda pior, eram possíveis sob prévia censura e severas restrições políticas. Essas almas não só não suportariam apodos como também se viam incapazes de sobreviver controladas por um poder totalizante, um poder que se sobrepõe a toda humanidade, a todos os sentimentos ligados ao amor. Esse poder totalitário se mantinha entranhado na sociedade por uma costura terrorista anônima. Alguns, de espírito bravio e destemido, decidiram por responder à altura. Pegaram em armas e assumiram o confronto. Outros, de índole pacífica e espírito irrequieto, preferiram abandonar o cenário de tragédias desvendado pela anunciação de perversas violências.

Ele era um desses. Estava entre os que elegeram o mundo como morada e o incerto como certo. Muitos construíram, na época, a crítica do niilismo. Mas isso era uma discussão filosófica. As pessoas que fizeram essa escolha não estavam preocupadas com o debate filosófico. Faltava apenas um ano para colar grau quando decidiu sair do Brasil. Estava estudando engenharia química na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Agora morava em Sevilha. Trabalhava como garçom e sua cabeça mudara muito. Na Europa, todo trabalho era digno de quem soubesse ou pudesse trabalhar. As diferenças salariais entre um engenheiro químico e um garçom eram mínimas. No mais, aquela mudança representava uma nova perspectiva. Ali não havia família, as paisagens e referências naturais eram outras. As instâncias sociais vertiam democracia. Os mores, os folks do povo citadino na Europa são divertidos e surpreendentes. E o planeta procurava paz. Movimentos contra a guerra do Vietnam, hippies, Bob Dylan, Ronald Laing, Stones. Tudo contribuía para uma retomada da carruagem da vida. Não desejava memórias. A militância fora por demais cruel com sua sensibilidade e a repressão mostrara suas garras sujas de sangue quando foi preso numa manifestação na Praia Vermelha numa passeata contra o fechamento do Congresso Nacional e a cassação do mandato de inúmeros parlamentares, publicada como uma lista negra pelos jornais. Amigos e parceiros também presos nesse dia nunca mais foram encontrados. Semanas depois, Henrique, seu irmão, artesão, foi preso por estranhos anônimos em roupas civis em plena feira de Ipanema debaixo de socos e supetões. Neca de lembranças, agora era outra pessoa, estudava Belas Artes aos dias e às noites, o restaurante, o trabalho. Morava num sobrado secular muito bem restaurado e com ligações, aquecimento e encanamentos modernos. Possuía conforto material raro para um engenheiro químico no Brasil. Seu espírito povoado de saudades oprimidas e sua convivência com as artes o tornaram frequentador habitual de igrejas. Gostava em especial de visitá-las às tardes, momento em que ficavam quase sempre vazias e silentes. Permitiam que uma energia consciente se apoderasse dos sentidos. Sensações estranhas ocorriam. Era ateu até o último fio de cabelo, mas, as imagens sacras projetadas por Rubens, Rafael, Fra Angélico, proporcionavam revelações. Indagava a sua consciência se sem a arte, a religião teria avançado tanto. A arte provoca um transe extático. A beleza de Notre Dame o colocou de joelhos às portas da Catedral. Notre Dame testemunhara a revolução, a guilhotina, inspirara a poesia e a literatura com a fábula lendária do Quasimodo.

Se lhe acometia a solidão, a inexorabilidade trágica da existência, buscava as igrejas. E estava longe de ser cristão. Lá debruçava nas janelas de suas dúvidas e inquietações e obtinha o saber e o sabor de estar integral consigo mesmo, sem sequer uma migalha deslocada da alma. Como atingir esse estado em outro ambiente da cidade? Ele o encontrava nas igrejas. O vislumbre dos mosaicos, os olhares compadecidos dos santos nas imagens.

As abóbadas das naves principais, os altares, esculpidos e talhados em detalhes barrocos, coroas, esplendores. E o silêncio trespassado por uma temperatura fria, um clima denso de ar em suspensão, vibrações. Pensava que aquelas sensações aproximavam as pessoas do significado do sagrado. A arte expressa o sagrado. No velho continente, os templos religiosos católicos são considerados museus, centros de preservação do patrimônio cultural. Na Catedral de Milão se paga o ingresso com direito a um concerto breve de Vivaldi interpretado em órgão secular.

Decidira conhecer a Catedral de Toledo e num sábado de um inverno decadente chegou à cidade. Desde as lutas contra os Mouros, Toledo desenvolvera a mais representativa fundição hispânica, ainda inteira em pleno século vinte e um e lá, até hoje, são fabricadas réplicas das espadas dos grandes cavaleiros. A cidade e sua majestosa Catedral estão encravadas nas montanhas do norte da Espanha. Dista do século doze a edificação da igreja. Seus vitrais de estilo gótico são sua principal atração. Ficara impressionado já na passagem pela Puerta Del Sol, os portais de acesso à cidade, com seu desenho curvilíneo ao alto, típico das construções árabes. Adentrar o ambiente percorrendo o trajeto de cinco metros de espessura dos muros pela Porta do Sol vibrava como retroceder na história.

Na Catedral, sentou-se no longo e gélido banco de carvalho. Raios de sol trespassavam os vitrais colorindo a nave principal sob uma tênue névoa da condensação do ar. Um fluxo de luz de um calor agradável iluminava seu rosto e o olhar. Cerrou os olhos procurando concentração para aproveitar com maior intensidade a delicadeza cálida daqueles raios de sol. Partículas em suspensão bailavam, espelhando luz numa escala de cores que obedecia aos traços das santidades retalhadas pelos desenhos dos vitrais. Estava vagando em pensamentos, em meditação, quando se sentiu observado. Estranhou. Estava ausente. Ao acordar, chamado por aquela sensação, virou-se e percebeu uma linda mulher de pele alva e aveludada. Cabelos louros e pernas torneadas. Usava um curto vestido azul sob o casaco e sorriu assim que seus olhos se encontraram. Ele devolveu um sorriso terno e confiante. Ela levantou e andou com olhos firmes até o banco onde ele estava. Aprumou-se a seu lado e manteve os olhos atados aos dele tal qual uma hipnose. A proximidade permitia sentir o aroma selvagem de sua pele, a textura e o brilho de seus cabelos, o corte oriental da boca. Com perfeição magnética de um imã, abraçaram-se em leigo beijo. Um beijo extenso que manifestava uma busca de respostas a todas as suas dúvidas existenciais. Um enxame de carícias seguiu-se àquele beijo numa expansão de infinitos afagos e toques sensuais, orelhas, nucas. Os carinhos chegaram ao ápice e foram lentamente minguando até os enredar em forte abraço fraterno que trouxe lágrimas e depois um choro convulsivo dos dois. Fio a fio, os cabelos ficaram elétricos naquela sinergia. Ela sorriu outra vez. Seus olhos acenavam despedida.

Encostou os lábios molhados na testa dele e pronunciou um murmúrio estalando suavemente a língua – El amor es eterno y fugaz. Caminhando a passos sincopados, desapareceu entre os feixes iluminados e coloridos dos raios de sol filtrados pelos vitrais.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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