Muitos analistas se mostram surpresos com o descompasso entre a queda do desemprego e um crescimento discreto do PT nas eleições municipais de 2024. Essa percepção ocorre pela compreensão insuficiente do que seja a taxa de desemprego calculada pelo IBGE.
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Muito se tem escrito sobre as eleições de 2024 e o desempenho insatisfatório da esquerda nesse pleito. Um dos temas que vem galvanizando as atenções é o tema do desemprego. Muitos analistas se mostram surpresos com o descompasso entre a queda do desemprego ao longo dos dois anos da gestão Lula e o crescimento bastante discreto do número de prefeituras conquistadas pelo PT e por partidos mais próximos de seu espectro ideológico (PSOL, PcdoB, PSB, PV e Rede) nas eleições recentes. Tal como procuraremos demonstrar, a percepção de um tal “descompasso” envolve uma compreensão parcial e insuficiente desse indicador peculiar que é a “taxa de desemprego”.
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que existe mais de uma pesquisa sobre emprego e desemprego no Brasil. Nós estamos tomando por referência os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral – PNADC/T. A partir do último trimestre de 2015, a PNADC/T passou a diferenciar os formalmente ocupados dos ocupados informais. Essa é a razão de tomarmos 2015 como nosso ponto de partida.
Quadro 1: Evolução do Mercado de Trabalho entre 2015 e 2024
Na primeira coluna com dados numéricos, nós temos a informação da População em Idade Ativa (PIA), vale dizer, do conjunto das pessoas com 14 anos ou mais. Na terceira linha desta coluna (como nas demais) temos a variação absoluta entre os dois períodos; e, logo abaixo, a variação percentual. Entre 2015 e 2024 a PIA cresceu em 8,91%. Na coluna ao lado temos o número de pessoas que, apesar de estarem em Idade Ativa, não estão no mercado de trabalho. Essas pessoas não estão nem empregadas, nem desempregadas: elas simplesmente não estão em busca de trabalho. Em termos absolutos, o crescimento desse segmento é menor do que a PIA, mas em termos relativos (percentuais) é mais elevado: o grupo de pessoas fora do mercado de trabalho cresceu 11,01%. Essa evolução é indissociável do crescimento da cobertura dos benefícios sociais, em especial (mas não só) do Bolsa Família. E o seu desdobramento é, ao retirar pessoas do mercado, deprimir a taxa de desemprego.
Na terceira coluna com dados numéricos, temos a evolução do número de pessoas que estão no mercado de trabalho. A expansão relativa desse segmento é a mais baixa dentre todos os segmentos com crescimento positivos: ela foi de 7,66%. Em termos absolutos, o número de pessoas que ingressaram no mercado de trabalho superou o número dos que não ingressaram em um milhão e cento e sessenta e seis mil pessoas. O número de desempregados, por sua vez, caiu 1 milhão e seiscentos e oitenta e um mil pessoas, uma queda percentual de -18,23%. Porém, a taxa de desemprego decresceu de forma mais significativa. Por que? Porque ela também é impactada pela queda percentual do Mercado de Trabalho em relação à PIA (de 62,8% em 2015, para 62,1% em 2024). Por fim, temos a evolução da ocupação. Do aumento de 9 milhões e 464 mil postos de trabalho entre 2015 e 2024, 42% do total são postos informais; e 58% são postos formais. Assim, a ocupação informal cresceu percentualmente mais (11,21%) do que a ocupação formal (9,65%).
Em suma: a queda do desemprego recentemente é indissociável do crescimento relativamente baixo do mercado de trabalho (em função de um crescimento menor da PIA e do crescimento significativo do número de pessoas fora do mercado) e ele se deve, em termos relativos, mais ao crescimento do trabalho informal do que do formal. Mas isso não é tudo. Há mais a considerar.
O primeiro é: o que é “ocupação formal”? Quem olha os dados com a “cabeça do século fordista” pensa, imediatamente, em: 1) trabalhadores com carteira assinada; e 2) funcionários públicos estatutários. … Pois é, pois é. Mas, no Brasil do século XXI, após a criação dos MEIs, surge uma nova categoria de agentes formalmente ocupados. Eles mesmos: os MEI. Entre 2015 e 2024 foram criadas 6 milhões 434 novos empreendimentos individuais. Note-se que este número é maior do que a variação do número de empregados formalmente ocupados entre estes dois anos, que foi (veja-se o Quadro 1, acima) de 5 milhões e 501 mil novos postos. Como isso é possível?
Simples: muitas vezes, o Microempreendimento Individual é uma fonte extraordinária de renda. Diversos trabalhadores que estão formalmente empregados no “padrão século XX” e que não têm compromisso de dedicação exclusiva criam o MEI para prestarem serviços que lhes garantem uma remuneração extra. Mas ela não é a fonte principal.
Infelizmente, não é possível saber –nem mesmo através do acesso aos microdados da PNADC/T, quantos são os ocupados “formalmente” que tem apenas o MEI como fonte de renda e quantos contam com outra fonte principal. Isso nos impede de sermos mais assertivos no que diz respeito à evolução da “formalidade” nos anos recentes. Mas não nos impede de fazer um exercício que pode ajudar na compreensão do problema para o qual queremos apontar. Imaginemos que 50% dos MEIs criados entre 2015 e 2024 sejam a única fonte de rendimento de seus criadores; e que outros 50% sejam empreendimentos voltados ao complemento de renda. E vamos dividir a população ocupada total em três categorias: Informal, Formal Século XX (ou seja: carteira assinada e funcionários públicos) e “Formal MEI”. E vamos ver a que resultados chegamos com esse exercício.
Quadro 2: Evolução da População Ocupada Informal, Formal XX e Formal MEI entre 2015 e 2024
Qual o resultado de nosso exercício? O crescimento da ocupação estritamente formal – no sentido do século passado – teria sido de algo em torno de 2 milhões e 282 mil trabalhadores: 24,11% dos 9 milhões e 464 mil novos postos de trabalho. O crescimento do Formal MEI corresponde a 3 milhões e 220 mil postos de trabalho: 34% do crescimento dos ocupados totais e 58,5% do crescimento de ocupados formais. E os informais respondem por 41,87% dos novos ocupados. Nessa simulação, se tomamos em conjunto os postos informais e formais MEI, eles responderiam por 75,89% dos novos postos de trabalho gerados na última década.
Vale insistir neste ponto: trata-se de uma simulação, de uma mera hipótese. Estamos em contato com os técnicos do IBGE para avaliar a possibilidade de termos acesso a dados mais rigorosos sobre a divisão do crescimento do emprego formal, diferenciando os “formais MEI” dos “formais tradicionais”. Mas, cremos nós, mesmo tendo um caráter meramente hipotético, essa simulação pode contribuir para que alguns dos analistas de esquerda que não entendem por que as eleições recentes não foram uma “festa do governo Lula” passem a olhar para a realidade econômica com um pouco mais de complexidade e não apontem com tanta veemência o dedo indicador e acusatório para a turma do andar de baixo.
De qualquer forma, quer nos parecer que seja urgente a atualização do sistema estatístico nacional no que diz respeito aos padrões de inserção no mercado de trabalho. A classificação dos trabalhadores em apenas dois grupos – formais e informais – não dá mais conta da complexidade das relações de trabalho contemporâneas. É preciso diferenciar o padrão de formalização. Empregados no setor privado com carteira assinada e funcionários públicos são assalariados e se submetem a um padrão (cada vez mais) particular e peculiar de contribuição social e de impostos diretos (com desconto em folha de pagamento). Microempreendedores Individuais e trabalhadores que se organizam em cooperativas para prestação de serviços ao setor público (como os catadores de lixo, por exemplo) ou ao setor privado (terceirizados) estão numa espécie de limbo entre os assalariados (formais século XX) e os “conta-própria” (informais século XX). Eles precisam ser reconhecidos em sua particularidade. Ou não poderemos analisar com rigor sua expressão relativa e as políticas públicas necessárias à efetiva inclusão socioeconômica desse novo segmento de trabalhadores.
Na verdade, esse é apenas um dos muitos aspectos em que o sistema estatístico nacional precisa ser atualizado. Há alguns meses, publicamos um artigo na Rede Estação Democracia intitulado O Fetiche da Produtividade. Apesar do título, mais do que apontar para os equívocos da sobrevalorização desta categoria para a análise econômica (o que também o fizemos), o ponto central de nossa crítica aos inúmeros trabalhos que vêm “denunciando a estagnação da produtividade no Brasil” foi de ordem estatística. Tal como buscamos demonstrar, os cálculos da evolução da produtividade industrial no Brasil vem sendo fortemente enviesados pelo processo de formalização do trabalho em empresas de pequeno porte e setores que só podem ser caracterizados como “industriais” num sentido formal. Este é o caso, em particular, das padarias (na “Indústria Alimentar”), pequenas serralherias (na Indústria Metalúrgica) e pequenas marcenarias (na Indústria de Madeira e Mobiliário). Tal como – corretamente – pretendia Karl Marx, dizer “Grande Indústria” é uma tautologia. A produção especificamente industrial é, por sua própria natureza, grande, apresentando vantagens de escala e escopo.
Não obstante, com a emergência do Simples Nacional e a queda relativa dos custos com encargos trabalhistas, microempresas e firmas de pequeno porte – em especial aquelas que contavam com a participação expressiva de mão de obra familiar – passaram a formalizar todos os empregados. Esse processo de formalização vem sendo computado como “ampliação dos postos de trabalho” (afetando as estatísticas de emprego e desemprego) no interior da “Indústria de Transformação”. Tentar calcular a evolução da produtividade do trabalho na indústria brasileira ignorando os vieses associados às mudanças legais, fiscais e institucionais associadas ao crescimento dos microempreendimentos na era da automação e da crescente negação do trabalho especificamente industrial é confundir alhos com bugalhos. Por contraditório que pareça (e seja!), a elevação da produtividade nas grandes empresas industriais gera um excedente de mão de obra que vem alimentando, no Brasil e no mundo, a emergência de uma miríade de microempresas de “fundo de quintal”, marcadas pela carência relativa de capital e abundância de mão de obra. Quando calculamos a produtividade “média” operando com empreendimentos de expressão relativa e função social tão distintos, ingressamos no mundo dos “gatos noturnos”: todos são pardos. Parece-nos que o sistema estatístico nacional poderia contribuir – e muito – para uma melhor apreensão da dinâmica econômica e social do país se adequasse seus sistemas de classificação de empreendimentos às novas realidades do mundo do trabalho e da organização produtiva mercantil.
NR: O autor publicou o artigo “Emprego, desemprego, empreendedorismo e as eleições“, onde aprofunda a discussão sobre o assunto.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Dogmas que subjugam o Estado brasileiro”, de Marcos Grillo.