Paulo Emílio Salles Gomes, um dos maiores defensores da nossa indústria cinematográfica, em seu livro “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, traçou um panorama bastante contundente do nosso cinema. Trata-se de um excelente ensaio político que nem de longe pode e deve ser considerado como um texto científico. Arte e política são inseparáveis. Ideologia e política permeiam tudo, estão em tudo. Não existe ciência pela ciência e nem arte pela arte.  Somos ao mesmo tempo ocupantes e ocupados. Como diz Paulo Emílio:

Não somos europeus nem americanos do norte. Mas destituídos de cultural original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre não ser e ser outro.

No fundo, a dialética da cultura brasileira faz com que o brasileiro tente não ficar pendurado no ocidente, mas, ao fazer cultura, não deixa de estar pendurado no ocidente. Somos ocidente. É e não é. Essa é a questão bastante intrincada que Paulo Emílio apresenta em seu ensaio.

Segundo ele, diferentemente de outras culturas como a hindu, japonesa, chinesa, árabe, dentre outras, o Brasil, por ser um país novo e periférico das sociedades ocidentais, é também uma extensão cultural delas, experimentando, até os dias de hoje, uma significativa influência e predominância da cinematografia ocidental. Aqui nunca houve culturas tradicionais a se oporem à cultura do ocupante. Mesmo em comparação com alguns países da América Latina, saímos atrás, ao contrapormos as raízes tupi guarani com as culturas inca, maia e asteca. Mesmo assim, todos, sem exceção, entraram no jogo do ocupante. Mas quem são os ocupantes? Segundo Paulo Emílio, no fundo, somos nós mesmos. Dilacerados culturalmente e incapazes de copiar de forma criativa. Mas existe uma cultura organicamente vinculada ao ocupado, essa cultura tem o seu processo apesar da repressão do ocupante. E é certo que persiste a luta por uma pequena reserva de mercado para a produção e exibição do cinema nacional.

O cinema é subdesenvolvido, mas esse cinema não produz necessariamente apenas filmes subdesenvolvidos. E o que nos chega de cinema estrangeiro vem filtrado pelas distribuidoras norte-americanas. Não chegam obras francesas, italianas, africanas, latino-americanas, etc. O problema não é o cinema estrangeiro, mas a maneira como nos relacionamos com ele. O ideal seria recebê-lo, absorvê-lo e produzir o nosso, num sistema de troca e de igualdade no plano cultural. A dura constatação é de que gostamos do cinema dos outros e nem tanto do nosso. Isso tem a ver com o nosso imaginário popular.

O contexto é de dominação da cinematografia (produção, mercado, filmes). Ocupante e ocupado tem a ver com mercado, economia, ideologia, classe. Estamos longe de sair do subdesenvolvimento como nação (economia estagnada, significativos problemas sociais, conflitos políticos, corrupção, desindustrialização, graves problemas com o meio ambiente, educação deplorável, baixo investimento em ciência e tecnologia, dentre diversos outros graves problemas). A cultura e o cinema são pequenas partes desse todo e não poderiam retratar uma situação distinta. Muito ao contrário, nos últimos anos, a área cultural foi vítima de políticas de desmonte do arcabouço institucional criado a duras penas para seu desenvolvimento. Inúmeros percalços no seu modelo de fomento, um verdadeiro boicote institucional, fruto do receio de que a cultura, na sua essência, seja um entrave para a consolidação de uma ideologia conservadora dos costumes. Não fomos capazes nem de cuidar dos acervos e preservar a memória da nossa indústria.

É marcante a hegemonia dos filmes estrangeiros nas telas de cinema do Brasil. Segundo dados da Ancine, em 2022, somente 4,2% do público de 95,1 milhões de espectadores foi ver os 244 longas metragens brasileiros exibidos. E observe-se que o total de filmes lançados foi de 385, dos quais 173 brasileiros (45,5%). Um tremendo desequilíbrio entre produção e distribuição/exibição.

Em 2019, o valor adicionado da indústria audiovisual foi da ordem de 27,5 bilhões, representando 0,376% do PIB de 7,3 trilhões, o que mostra que já dispomos de uma potente indústria cinematográfica no Brasil, com importante efeito multiplicador na economia.

Essa indústria é importante. Já conseguimos produzir uma média de 180 longas metragens por ano no Brasil. Mas, infelizmente, só alcançamos uma média histórica inferior a 10% de público para assistir esses filmes. Dos 150 a 180 filmes lançados por ano, cerca de 80% faz menos de 10 mil pessoas de público; 40% deles conta com menos de mil pessoas, o que faz com que normalmente um filme nacional fique apenas uma ou no máximo duas semanas em cartaz. Ou seja, das quase 100 milhões de pessoas que vão ao cinema por ano, só um percentual muito baixo vai assistir os filmes brasileiros (4,2%, em 2022).

Na indústria do cinema, há um tripé: produção, distribuição e exibição. Nossa brava gente consegue produzir muitos filmes por ano. Patamar de OCDE. Mas, nosso povo não vai assistir nossos filmes. Os blockbusters ocupam quase todo o espaço. As nossas comédias ocupam as cotas de tela impostas pelas autoridades e os filmes mais existencialistas, questionadores, filmes de nicho, etc. ficam a ver navios. Não são vistos.

Quais as razões para a ausência de público? Por que ninguém vai ver os nossos filmes? Pagamos impostos, subsidiamos a produção de filmes e eles fracassam na exibição e distribuição. Por que será? Nossos cineastas sabem disso e ficam deprimidos por não encontrarem soluções. E mesmo assim continuam produzindo seus filmes e aportando suas mensagens, o que é muito louvável.

A baixa presença de público decorre de diversos fatores:

  • Fator cultural e educacional – os brasileiros ainda são refratários ao cinema brasileiro; culturalmente, preferem os filmes estrangeiros, as grandes produções, cuja promoção e marketing é muito mais efetiva do que aquelas dos filmes nacionais.
  • Fator socioeconômico – a crise de emprego e renda que temos vivenciado nos últimos anos é responsável pelo baixo poder aquisitivo do povo. Ir ao cinema tornou-se um programa para a classe média-média, e daí pra cima. As classes baixa e média-baixa priorizam outros gastos e, portanto, raramente vão aos cinemas.
  • Fator entretenimento – o povo, na sua maioria, definitivamente, não tem formação cultural nem interesse em ver filmes de nicho (ou filmes independentes, como são chamados). Priorizam as comédias, os filmes de ação, enfim, entretenimento stricto sensu. E a baixa diversificação de gêneros na produção de filmes nacionais é, em parte, responsável pela falta de público nos filmes brasileiros.
  • Fator tecnológico – aproximadamente 70% da população brasileira tem, de alguma forma, acesso à internet. Isso mudou, de forma definitiva, o ímpeto de ir ao cinema. O sucesso do YouTube, lançado em 2005, enterrou o velho hábito de se ter hora marcada para consumir conteúdo. Surgiu o conceito de on demand, no qual é o consumidor quem decide o que assistir, quando, onde e como. O modelo de negócios de conteúdo online conquistou o mercado. Os usuários assistem filmes e shows na hora que desejam, podendo pausar ou voltar, sem necessidade de fazer o download do conteúdo para seu equipamento.  O consumidor comenta, edita, e compartilha filmes e séries e, com isso, reconfigura o circuito midiático, a ponto de fundar uma nova cultura, mais participativa.

As pessoas usam as redes sociais, por onde os conteúdos chegam ao seu conhecimento. As pessoas menos abastadas têm a possibilidade de compartilhar com várias outras pessoas as assinaturas de Video on Demand, o gato net, além de outras formas de acesso (1 mês grátis, etc.). Isso fica mais barato para elas, que trocam mensagens, compartilham opiniões, enfim, é uma forma muito mais democrática e participativa de troca, bastante diferente da possível catarse “sofisticada e intelectualizada” da experiência de ver um filme no cinema.

O tipo de salas de cinema não é o mesmo que antes. Presentemente, os cinemas se sofisticaram e aqueles de bairro terminaram desaparecendo.  O público com poder aquisitivo vai aos shoppings e lá experienciam ver filmes em 3D, mais caros e inacessíveis ao grande público. E, então, o que fazer? Qual a saída?

Ações e escolhas voltadas para o aumento do público do cinema nacional passarão necessariamente por políticas de longo prazo, de valorização da educação e de fomento ao tripé produção, distribuição e exibição dos audiovisuais. O país já tem uma capacidade instalada pujante, que nos assemelha a importantes mercados estrangeiros de produção de audiovisual.  Nossas carências são mais evidentes nas áreas de distribuição e exibição. Falta, então, investir tempo, recursos e criatividade para se lograr atingir, gradativamente, um crescente aumento do público para o cinema nacional.

– Ações estruturantes

Evidentemente, são requeridas ações de base na área educacional. Levar o teatro e os conteúdos audiovisuais para as escolas, contribuindo para um maior conhecimento de nossa história, geografia, folclore, idiossincrasias regionais e imaginário coletivo. Aumentar o contato de nossas crianças e os jovens com o nosso cinema é o primeiro passo de uma longa caminhada a ser trilhada. Dessa forma, e com uma visão planejada de longo prazo, difunde-se de forma lúdica, prazerosa e organizada a cultura nacional entre crianças e jovens que, aos poucos, irão tomando gosto pelo nosso cinema. E isso pode ser feito nas Escolas Municipais, Estaduais e Federais, nas Universidades, fomentando-se a utilização de espaços públicos como salas de exibição pública de filmes, a exemplo do que acontece no Circuito SPCINE, no SESC, no SESI, dentre outras iniciativas.

– Aproveitamento das experiências de outros países (França, Coreia do Sul, Argentina, entre outros)

Na França, por exemplo, além das cotas de tela e dos incentivos do Ministério da Educação para a exibição de filmes e peças de teatro a nível municipal, o governo autoriza redução de impostos para a exibição de filmes de arte/ensaio tanto franceses como estrangeiros. Na Coreia, o fomento foi mais bem sucedido e menos errático que no Brasil, já que lá apostou-se com mais seriedade na educação popular e no fomento à cultura, para então, projetá-la internacionalmente, consolidando-a no mundo junto com suas marcas e indústrias.

– Divulgação e Marketing dos filmes nacionais

Para evitar que as produtoras de filmes negligenciem a divulgação de seus audiovisuais, a Ancine poderia fomentá-las a adotar um maior comprometimento com a correta orçamentação e ações assertivas de marketing e divulgação dos filmes, passando a envolver as Distribuidoras nessas atividades desde o início da produção dos filmes, o que possibilitaria uma antecipação na ativação da rede de divulgação dos filmes. A recente notícia de aumento da verba de divulgação nos Editais de R$ 100 mil para R$ 300 mil já terá efeitos concretos de captação de maior público.

  • Incentivo pela Ancine e Ministério da Cultura com vistas a uma maior diversificação dos gêneros.
  • Incentivo pela Ancine e Ministério da Cultura a Festivais, para propiciar uma maior divulgação dos filmes.
  • Melhoria da distribuição de filmes de forma concomitante para os vários meios (pay per view, TV por assinatura, canais internacionais, TV aberta, vídeos domésticos e VoD/Mídias Digitais), após o filme ter sido exibido nas salas de cinema.
  • Fomento à introdução de novas tecnologias (3D, etc.) para melhorar a experiência do público nas salas de cinema
  • Fomento a Cineclubes – espaço de formação e difusão e Festivais
  • Regulamentação, pelas autoridades públicas brasileiras, das plataformas de streaming, presentemente subtributadas, fazendo com que elas reforcem a produção e distribuição dos produtos nacionais.

É plenamente factível alcançarmos sucesso na nossa indústria audiovisual. Nosso país tem uma enorme riqueza cultural que pode continuar sendo devidamente valorizada. Boas histórias, documentários e excelentes roteiros podem ser muito bem concebidos, tanto nacional quanto internacionalmente. O Brasil é um país aberto para o sincretismo cultural. A indústria já apresenta uma excelente capacidade instalada, com bons cursos e universidades na área. O país dispõe de reservas para importar bens, equipamentos e softwares necessários para nosso constante updating tecnológico. Existem, portanto, presentes e latentes, todas as condições necessárias para a continuidade da produção audiovisual brasileira. Trata-se, apenas, de um aprimoramento dos mecanismos institucionais de apoio para vencer a inércia e o nosso complexo de vira-lata.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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