Colocou a mala de mal jeito, displicentemente. No íntimo de seus pensamentos, o próprio ato de puxar uma mala de rodinhas pela longa alça já era indigno, pior ainda era ter que, sozinha, colocá-la no “compartimento superior” do avião. Não que fosse pesada, era só coisa que não era para ela. Coisa braçal. De operário. De trabalhador. De gente que sua no trabalho e não só na academia ou na cama.

A fila do embarque já foi um tormento. Fila era coisa popular demais. E aquela gente estranha e malvestida perto dela! Parecia gente tão comum. Terrivelmente comum. Não entendia o que gente comum fazia ali, ao lado dela, na fila preferencial dos clientes prime. Pensou que gente como ela não deveria apenas embarcar primeiro, deveria embarcar longe. Na falta de uma divisão de classes nos voos domésticos, era o mínimo que a empresa deveria fazer.

Não queria as bagagens daquela gente perto da sua. Eram sujas como eles. Fora que poderiam usar a proximidade como desculpa para pegar algo seu. Na sua cabeça, sempre há alguém querendo tomar algo seu. Sempre alguém dessa gente que sua. Tem certeza de que todos tem muita inveja dela e de tudo que é seu. Tentou fechar a tampa do compartimento. Ajeitou, reajeitou, jogou para um lado, para o outro. Tentou todas as alternativas geométricas possíveis. Não tinha jeito. A mala não cabia no compartimento. Desistiu.

Não demorou para uma comissária lhe dizer que aquela mala deveria ser despachada porque não cabia ali.

-Não. De jeito nenhum. Sou Prime! – Disse com sotaque de quem fala inglês sem o sotaque daqui.

– Mas, senhora, não cabe.

– Mocinha… – A comissária deveria ter a mesma idade que ela. Talvez mais. O “mocinha” não tinha a ver com a idade da interlocutora, mas com a distância que há entre quem é prime e quem trabalha.

– Já disse que sou prime, PRIME! Entendeu? Minha mala não vai sair daí. Se sair, vão me roubar. Tire a mala de outro…

– Senhora, não há cabimento. A mala que não cabe é a sua. Enquanto não for despachada, o avião não pode decolar. O atraso vai prejudicar a todos.

Nenhum daqueles argumentos parecia fazer sentido a ela. “Não tem cabimento!!!? Que impertinência!”, pensou. Não suportava a petulância de gente como aquela “mocinha”.

Seu bisavô morreu lamentando que o governo lhe roubou os escravos. Seu avô repetia os lamentos: “Governo é ladrão”, assim como seu pai. Herdou dos antepassados a certeza de que sua mala pode ser maior que a dos outros. E que é intocável! Afinal, já tiraram coisas demais de sua família.

– Olha aqui, mocinha! Eu já disse, mas você não tem capacidade de entender. Vou repetir. Minha mala não vai sair daí. Ponha-se no seu lugar e dê seu jeito! – disse com o tom firme e áspero de patroa que repreende a mucama.

A comissária saiu de perto. Meio por raiva, meio pela necessidade de ajuda para lidar com a “senhora”. O recuo foi tomado como uma vitória.

Virou-se para o passageiro ao lado, que lhe parecia prime e branco como ela. “Viu que coisa? Essa gente, aff! Não se enxergam! É por isso que este país não vai para frente. Tratando quem produz e gera empregos, quem faz a economia acontecer, desse jeito!”. O vizinho, silencioso como os demais passageiros, apenas assentiu com a cabeça. Mais para desconversar do que para concordar.

Eu soube dessa história há dias. Também ouvi dizer que o avião ainda está lá, parado. Incapaz de resolver o conflito entre quem quer o voo só para si e quem só quer voar.

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Ilustração: Mihai Cauli
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