“Um médico em Manhattan salvou a vida de um homem de graça”
“It’s a miracle” de Roger Waters
 

Para Henrique Cosenza, pela inspiração.

Para continuar existindo, uma sociedade precisa de cuidados com as pessoas e com as novas gerações, incluindo a preservação da saúde e do ambiente, mas estes cuidados são desvalorizados ou transformados em mercadoria em nossa sociedade capitalista. E a humanidade perde.

A exploração dos cuidados acontece quando os salários não cobrem os custos de gestação, amamentação, cuidados domésticos, alimentação e educação do próprio trabalhador e de seus filhos. Tais tarefas ficam a cargo das mulheres, obrigadas a fazê-las “por amor”, por obrigação e sem remuneração e nem reconhecimento social.

Quando os sindicatos tentam (tentavam) reajustar o salário para a inclusão destes custos ou quando exigem creches, escolas e cuidados familiares, as empresas capitalistas aumentam o desemprego local (para quebrar os sindicatos) ou se mudam para países com mão de obra mais barata, onde há falta de proteção de sindicatos ou do Estado. Tipo, Brasil.

Os cuidados com a vida humana são degradados também quando transformados em mercadorias, por exemplo, quando não existem ou são sucateados os serviços públicos de saúde, e quando os trabalhadores precisam pagar por atenção médica, gestação e parto, puericultura, vacinas, creche, escola, saúde da família, enfim. Nesta situação, somente aqueles que podem pagar é que recebem tais cuidados na proporção de sua capacidade econômica e não das necessidades reais que enfrentam.

Os cuidados com a saúde, incluindo a medicina, então, se encontram no meio destas contradições do sistema capitalista, considerados, por um lado, como fundamentais para a existência da própria sociedade e, por outro, como mais uma mercadoria cujo valor monetário é determinado pela oferta, procura, monopólios e desigualdades de renda. A necessidade de lucro canibaliza os cuidados com a vida, incluindo o ambiente, ameaçando no longo prazo o próprio sistema capitalista, que não se importa com o futuro, como a serpente que se autodevora, o Oroboro da Nancy Fraser.

Nesse sistema social, nós, as pessoas formadas em medicina, podemos trabalhar com a medicina privada (consultórios) ou como assalariadas nas clínicas, hospitais, planos de saúde e serviços públicos de saúde oferecidos pelo Estado. Este conflito entre a medicina privada e a pública não é recente e se alimenta de visões de mundo bastante distintas.

A maioria de nós, médicas e médicos atualmente em exercício, é proveniente da elite, por dispor previamente de capital financeiro, capital social e capital cultural. Tal condição facilita nosso acesso às faculdades públicas ou permite a capacidade de pagar mensalidade nas faculdades privadas. Assim esperamos conseguir com o diploma, o capital simbólico que faltava para completar nosso estrato social e nosso extrato bancário.

O capital simbólico da medicina é formado pelo status de dignidade atribuído à nossa missão (a possibilidade de oferecer cuidados vitais para os seres humanos) e ao suposto mérito alcançado com o esforço pessoal para passar no vestibular e para aprender a tecnologia médica durante os longos anos de faculdade, residência e especialização.

Este capital simbólico se materializa na chamada autonomia do médico, que nos garante o direito de seguir nossa própria opinião a respeito de qualquer assunto, do uso da cannabis medicinal ao direito ao aborto legal, passando pelas vacinas, cloroquina e máscaras, muitas vezes desconsiderando diretrizes internacionais, estatísticas, consensos científicos ou os próprios livros básicos de nossas faculdades. Esta situação pode transformar um consultório num tribunal único, no qual o juiz, o promotor e a defesa são a mesma pessoa, enquanto a clientela deve pagar o custo do processo.

Grande parte de nós, imbuída da dignidade da profissão e do mérito pessoal, busca um local de trabalho que reconheça o nosso capital simbólico e remunere adequadamente. Geralmente, isso é possível apenas na clínica particular, ou seja, no mercado de trabalho que atende àquela fatia de 10% da população de classe média alta, geralmente a origem do próprio médico e de nossos valores ideológicos.

Se a aritmética funcionar, 90% dos médicos terão que se acomodar em outros locais de trabalho, onde deverão receber um salário, com todas as implicações financeiras e simbólicas que isto representa. Como há mais médicos formando do que pessoas tornando-se ricas, a disputa pelo mercado particular aumenta e, naqueles que ficam de fora, pode surgir o profundo ressentimento do nicho perdido: a medicina não é mais como antigamente!

Mas antes de passarmos ao médico assalariado propriamente dito, precisamos lembrar que em todas as oportunidades de trabalho, públicas ou privadas, a formação médica atual, altamente tecnológica, nos prepara para nos tornarmos sofisticados gerentes de vendas de medicamentos e produtos médicos. Por exemplo, a cooptação dos médicos nos Estados Unidos e agora no Brasil (ver aqui) para promover a venda de analgésicos, o que vem causando epidemia de mortes por overdose de opioides. Essa posição, geralmente não assumida, de fazer parte da indústria, não parece manchar o capital simbólico de uma parte dos médicos “cultivados” por laboratórios farmacêuticos, já que são convencidos por informações científicas sobre os produtos e pelos quais recebem comissões, às vezes milionárias. Ninguém advoga contra o próprio salário, sabemos.

Além do capital simbólico reconfigurado pelo fato de termos que trabalhar por um salário, nosso padrão de vida precisa ser mantido compatível com o capital financeiro-social-cultural de origem (ou financiado). Isso nos obriga a trabalhar em mais de um emprego para mantermos ganhos médios de 30 mil reais por mês, ou seja, muitas vezes mais do que aquilo que 60% da população brasileira recebe, que é menos do que um salário-mínimo.  Assim, muitos de nós temos que trabalhar em um ou mais hospitais, planos de saúde ou clínicas particulares para atingir essa meta, enquanto mantemos uma sala para consultas particulares eventuais, quem sabe, para sair da correria dos plantões e nos tornarmos nosso “próprio patrão”. Ou seja, trabalhar por conta e risco próprios, o que significa precarização e uberização da vida.

Além das clínicas e hospitais particulares, os serviços de saúde pública também se tornam opções de trabalho, ainda que provisório por desestimular nossa dedicação profissional e gerar impaciência, frustração e mau atendimento. Uma vez que a saúde pública é um dos alvos das austeridades capitalistas (da direita mais extrema à esquerda mais social democrata), essas condições de trabalho geralmente são pobres, com recursos limitados, o que agrava a insatisfação do médico e da população atendida. Todo mundo infeliz, é o resultado prático desse sucateamento do bem público e dos ideais profissionais.

A frustração abre portas para a busca de culpados pelas condições atuais do trabalho médico: a invenção do SUS, as cotas raciais, as políticas de inclusão de minorias, o feminismo, o politicamente correto, a elite científica das universidades, a legislação democrática e eventuais governos de esquerda. Com a visão distorcida pelo ressentimento, não somos capazes de perceber que, apesar de nossos privilégios, somos também trabalhadoras e trabalhadores vítimas da predação insaciável do capitalismo, que canibaliza todos os valores humanos e a vida no planeta.

Essas condições acima levaram um médico, de plantão num hospital público, a exclamar quando foi chamado para atender uma gestante: Esse trabalho é uma droga!

Certamente, ele não se referia ao trabalho de parto, – um momento no qual a humanidade se renova, mas por não conseguir perceber porque a sua própria humanidade, assim como todos os cuidados com a vida e o planeta, estão sendo degradados em meio às ruínas do neoliberalismo.

Agradeço as leituras e sugestões de Henrique Cosenza, Luíza Rodrigues, Nilton Rezende, Sara de Castro e Juliana de Souza.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
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