A Memória Histórica (e o caso Assange)

I

A semana começou movida pelo turbilhão provocado pelas declarações do presidente Lula comparando a política de Netanyahu para Gaza com o genocídio dos judeus europeus. E a primeira pergunta que se pode fazer é: num palco de credibilidades em disputa onde se apresentassem Lula e o primeiro-ministro israelense, que resultado se poderia esperar? Porque é disso que se trata. Lula está jogando sua credibilidade internacional contra a política do governo de Israel que está assassinando, sem trégua e sem que ninguém consiga fazer parar, milhares de civis, crianças em sua grande maioria. Não é o passado o que está em jogo, nem a história, nem os mitos e os assuntos sagrados que, aliás, os primeiros a dessacralizá-los são seus proprietários ou os que se alimentam e se alimentaram deles décadas após décadas. Lula não é nem historiador nem jurista. A questão jurídica será decidida no decorrer dos próximos meses e anos pela Corte Internacional de Justiça, que determinará se Israel está cometendo contra os palestinos de Gaza o mesmo tipo de crime cometido pelos nazistas contra os judeus europeus. A declaração de Lula, como é óbvio para quem quer que queira entendê-la, tem um sentido político. O presidente está lá fora, numa viagem por países estreitamente relacionados com o conflito, fazendo o que sabe e deve fazer, i.e., política para tentar interromper o morticínio.

II

Imediatamente se fez um ruído tremendo. De cara, não custava buscar na internet qual tinham sido as palavras exatas de Lula. E até onde vi foram essas: “Sabe, o que está acontecendo na faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus. Não é uma guerra, é um genocídio.” Não há uma única sílaba contra o povo judeu. Há uma acusação implícita e obviamente identificada contra uma determinada política: “o que está acontecendo na faixa de Gaza com o povo palestino” e é este o alvo da comparação com o “momento histórico… (no qual) Hitler resolveu matar o povo judeu”. Estamos lendo grego? Alguma dificuldade de entendimento? A acusação e a comparação são clarissimamente dirigidas à política do atual governo de Israel na faixa de Gaza. Que se reclame do discurso por desproporcional e exagerado – e, então, muito adequado à violenta desproporcionalidade da reação israelense ao ataque terrorista do Hamas. Mas não há como encontrar brechas entre o que disse e qualquer acusação contra o povo judeu. Ele não disse, e poderia ter dito, por exemplo, “quando os alemães resolveram matar os judeus”, e isso, sim, poderia ser interpretado como uma sugestão de que os judeus resolveram matar os palestinos. Em nenhum momento fez a mais mínima referência ao povo judeu. Por que então há judeus, aqui e ali, que estão se sentindo ofendidos pela crítica dura e pela crudelíssima comparação entre a política de Netanyahu em Gaza com o genocídio comandado por Hitler? Não soa um pouco como se se estivesse estabelecendo uma solidariedade implícita com essa política? A verdade é que pouco importa. O fato é que os eventuais rechaços à declaração do presidente do Brasil são imediatamente capitalizados pelo governo de Israel, habilíssimo em capturar a memória da tragédia histórica (o Holocausto) para transformá-la em capital político em benefício da impunidade.

III

(Perguntar não ofende, suponho, mas afinal de onde e por que diabos alguém teve a ideia de tirar do olvido aquele chanceler que foi pego com a boca na botija confessando que não tinha escrúpulos? Lembram, literalmente: “Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”? E só para sugerir, do alto de sua autoridade moral, que o presidente Lula deve pedir desculpas ao povo de Israel. Convenhamos! Se alguém em algum momento deve pedir desculpas ou prestar contas ao povo do seu país é o seu atual primeiro-ministro. Uma pena que vivamos num planeta que caminha do mal para o pior e cada vez com menos esperança.)

IV

Lá pelo dia 10 de fevereiro, a ameaça iminente do ataque israelense a Rafah, no sul de Gaza, provocou um pequeno alvoroço e até a ministra das Relações Exteriores da Alemanha Annalena Baerbock, militante dos Verdes (nosso pobre planeta vai mesmo ladeira abaixo, de mal a pior… etc) insistiu que “uma ofensiva do exército israelense sobre Rafah seria uma catástrofe humanitária”. Seria interessante definir o que para a Alemanha e para os Verdes germânicos é uma catástrofe humanitária, já que o preâmbulo desse anunciado ataque, tudo o que ocorreu até agora, não o é. Agora que o vaso já faz água, os alemães pedem um pouco de contenção ao destempero dos ultradireitistas israelenses. Se Israel está cometendo genocídio em Gaza, e disto está formalmente sendo acusado em Haia, França e Alemanha, além dos Estados Unidos, é claro, deveriam ser imputados como cúmplices. Ou acaso não sabiam seus experimentados políticos que a tipos como Netanyahu (ou Hitler) não se pode dar carta branca? Acaso não conheciam sua trajetória e métodos? Ou acaso os dispendiosos e eficientes aparatos de inteligência ocidentais, em conjunto e isoladamente, não foram capazes de informar os que tomam as decisões para a dimensão do que estava por vir? O próprio primeiro-ministro não titubeou em anunciar as dimensões bíblicas da vingança que perpetraria. Ou é que a política do século XXI abandonou de vez a necessidade de prestar contas dos seus atos ao populus ou ao menos de tentar manter as aparências? É como se tivesse incorporado um radical desapego pela coerência no comportamento, de modo que tanto faz o que digam e o que fazem num caso e o que fazem num outro, que seus gestos e falas estejam em flagrante contradição porque, no final das contas, pouco lhes importa o que vai pela cabeça do distinto público. Tanto faz que digam sim quando o caso é no Cazaquistão (ou em Mônaco), e não quando o mesmo caso é no Uzbequistão (ou em San Marino).

V

Talvez por julgarem que já não exista memória, ou ao menos memória que perdure mais que uns poucos meses, se tanto, ou que o ente público tenha se aproximado tanto do ente consumidor que acabaram por se tornar uma só coisa, algo com um mesmo tipo de memória com um prazo de duração muito delimitada a partir da qual se extingue como a chama de uma vela de bolo. Qual a percentagem dos seus eleitores ainda se lembra do que está se passando na distante Palestina e dos horrores perpetrados pelos israelenses? Ou, pior, tem paciência para ouvir sobre? Quem sabe, por isso mesmo, esse público e sua desmemória sejam facilmente manipuláveis, e é com isso que contam os Macrons (liberal) e os Scholzs (social-democrata). Reagem a um ou outro pico de estímulo sensorial (a ameaça de invasão de Rafah, por exemplo, ou a uma declaração desmesurada de um destemperado político do sul do hemisfério) e já está.

VI

O problema, ou um dos problemas, dessa atitude de liberais e social-democratas é que em algum momento podem acabar eles mesmos engolidos por essas forças que ajudaram a desprender das profundezas do inferno. O planeta, como já disse, está cheio de Netanyahus e, aparentemente, só crescem em número e atrevimento na exata medida em que não se veem inibidos – por exemplo, por gestos e palavras à altura do seu próprio atrevimento. O líder israelense tem camaradas de espírito por toda a Europa e além-mar. Nenhum deles é judeu. Aliás, quem disse que o mal e a maldade têm raça, cor ou religião? Muitos deles demonstram profundas simpatias ainda não de todo reveladas por aqueles que quiseram exterminar os judeus da Europa. Ao primeiro-ministro do Estado de Israel isso pouco importa. Cultivar a história do povo judeu como vítima do Holocausto é, para ele, Netanyahu e seus aliados políticos, apenas uma maneira de se permitir perpetrar contra os palestinos crimes similares, embora não idênticos, aos perpetrados pelos nazistas.

O julgamento de Assange

O desrespeito pela coerência faz do cinismo e da hipocrisia expressões mais que perfeitas da democracia do Império. Não lhes importa a mínima se o que dizem para a guerra da Ucrânia está em flagrante contradição com o que praticam junto a Israel na Palestina ocupada, se o que denunciam em Putin bate de frente contra o que eles mesmos fazem contra seus adversários ou simples críticos quando estes iluminam suas mazelas e denunciam seus atos clandestinos e ilegais. É verdade que Putin não tem o menor pudor em manter numa solitária de uma prisão de segurança máxima da Sibéria qualquer dos seus opositores até que morram. Mas há quanto tempo não se tem sequer uma fotografia de Julian Assange, enclausurado há cinco anos numa solitária da prisão de segurança máxima de Belmarsh no sudeste de Londres a mando do Departamento de Estado? E o que espera o jornalista, caso o subserviente governo inglês conceda a extradição, senão a morte em vida numa penitenciária dos Estados Unidos? Mas é claro que sempre se poderá argumentar que a Assange restará o consolo de estar cercado pelo caloroso afeto dos seus coleguinhas da tão poderosa, e silenciosa, free press norte-americana.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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