Nós nos habituamos a conviver com a mentira como se ela fosse um adereço do dia a dia, uma necessidade ou um fenômeno do qual é impossível escapar. Mentem quando anunciam os produtos de que necessitamos e aqueles dos quais não temos nenhuma necessidade – até nos convencerem de que são absolutamente imprescindíveis.
Boa parte da política contemporânea – mas não toda ela, é claro – tem como matéria-prima básica a mentira. Que essa substância esponjosa e repugnante seja repetida ad nauseam sem nos provocar repulsa deveria nos indicar que uma espécie de encantamento está sendo utilizado para determinar as condições da nossa existência e nossas escolhas.
Onde quer que nos deparemos com campanhas eleitorais, lá estarão também seus carcomidos bordões espargidos como água benta por famintos candidatos a cargos de todos os níveis, do vereador ao presidente. Um bom mecanismo de verificação da qualidade daquele que tenta seduzir o eleitorado pode ser encontrado na quantidade de vezes em que o sujeito repete aqueles bordões.
Quanto mais os utilizam mais claro fica que estão atuando como prestidigitadores – não por acaso, os que mais o fazem são justamente aqueles que pouco estão se lixando para as necessidades reais da maioria dos eleitores. Não fosse assim e já estaríamos saciados de saúde, segurança, transporte, educação. Pleito após pleito e lá está essa pequena lista de promessas no topo daquilo que segue tendo tanto apelo justamente porque é o que menos se providencia.
Mas por que é assim?
Uma boa resposta talvez possa ser encontrada no fato de que os interesses daqueles que em geral conquistam a confiança do cidadão ordinário estejam muito longe – além de muito bem disfarçados – das promessas que anunciam. Não é para defender as demandas dos seus eleitores que se apresentam à ferrenha disputa. Ao contrário, se necessitam do apoio popular é para seguir defendendo os interesses dos amigos – ou, como dizia o artigo anterior, “para defender os interesses dos grandes sócios, mas também os dos mais achegados e, é claro, os dos muito achegados”.
De que outra maneira uma parcela ínfima da sociedade – de uma sociedade onde a riqueza e o bem-estar estão extremamente concentrados nas mãos de poucos – poderia seguir no comando da imensa maioria? Não há outra via, não pelo menos nisso que chamamos de Estado Democrático de Direito, que não a do engano permanente.
Mas se estivesse isolado na política, o engodo seria muito facilmente detectado. Por isso, as classes privilegiadas precisam produzir e distribuir a mentira em grandes doses. E para que sua mentira siga tendo o sabor da mais pura verdade, precisam torná-la uma mercadoria de ampla aceitação. Ela precisa estar no campo da política ao mesmo tempo em que nos mais triviais atos do dia a dia.
É preciso se habituar a ela até que se torne, também ela, uma necessidade.
E se mentira soa demasiado simples, chame-a de sedução.
Agora, imagine uma sociedade que não precisa mais mentir – mas não porque prefira dizer a verdade. Não é isso. Uma sociedade onde se permite que a desonra e o crime apareçam e se reproduzam sem inibição de qualquer ordem e sem sequer a necessidade de disfarce. Ao contrário, uma sociedade que os exibe às escâncaras, como o fortão que, vitaminado e orgulhoso, exibe sua musculatura.
Estamos no limiar de um mundo assim.
O Ocidente está rapidamente se encaminhando nessa direção. Figuras como o presidente dos Estados Unidos e o primeiro-ministro israelense são luminares desse novo modus operandi. E não são figuras de segunda linha – como a família Bolsonaro. Seu poder de influência é arrasador.
Ou não será por essa razão que os multibilionários do século XXI estão comprando os mais poderosos e eficazes mecanismos de comunicação? – o dono da Amazon comprou o Washington Post, o dono da Oracle, Larry Ellison, comprou a Paramount Global e a Warner Bros, o Homem Mais Rico do Mundo comprou o Twiter e o transformou numa ferramenta de apoio para a eleição de Trump e para dar suporte a partidos neonazistas mundo afora – o Alternative fur Deustchland (AfD) da Alemanha, por exemplo.
Seguramente não será apenas para aumentarem suas já mais que fabulosas fortunas.
Enganar e seduzir é um dos fundamentos desse nosso ultrarreificado mundo próspero.
Criador (a mercadoria e sua cria dileta, o capital) e criatura (a sociedade onde imperam de forma absoluta) em algum momento teriam que se confundir – o Imperador é nada mais nada menos que o resultado dessa fabulosa fusão. Acaso haveria alguma razão para esperar que a política pudesse escapar dessa monstruosidade?
Sátántangó
O prêmio Nobel de literatura acaba de ser dado ao húngaro László Krasznahorkai – autor de um romance cujo título poderia ser traduzido como o tango de satã, mas que muito acertadamente permaneceu como Sátántangó na edição brasileira da Cia das Letras. O livro foi transformado em um filme com mais de sete horas de duração pelo também húngaro Béla Tarr – com a participação direta do escritor na elaboração do roteiro.
Numa mensagem rápida pelo WhatsApp logo que anunciado o ganhador, um amigo sugeriu que não podendo premiar o filme, à academia sueca ocorreu premiar o livro que lhe deu origem. Não que o livro e seu autor sejam desmerecedores do prêmio. Ao contrário. Mas a obra levada ao cinema tem a marca das grandíssimas obras-primas.
(Que ninguém se assuste com os seus 447 minutos de duração e suas longuíssimas e lentíssimas sequências. Trata-se para o espectador de uma experiência cinematográfica praticamente impossível de ser interrompida desde o momento em que se inicia. É quase como uma hipnose – essa é pelo menos uma das maneiras de frui-la. Deixar-se entregar aos encantos da narrativa, seus ritmos e sons. Passado o impacto inicial, novas camadas de força nos atraem de novo para a experiência – e de novo, e de novo.)
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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