sequestro dos simbólos nacionais nos privs de vestir a bandeira nacional

Um colega do México ficou surpreendido quando recentemente publicou um cartaz que fazia o chamamento de um curso organizado pela Associação de Ciência Política de seu país com participação de pessoas de diferentes países, cuja nacionalidade era identificada pela bandeira correspondente, o que gerou entre colegas do Brasil o comentário (suponho que irônico, mas como a ironia anda em falta, nunca se sabe) que eu e outro participante estaríamos demonstrando nossas preferências bolsonaristas. O mexicano, que viveu anos no Brasil, se surpreendeu como tão rapidamente a bandeira nacional foi capturada por um movimento político de extrema direita.

Ao ouvir grito de “minha bandeira não é vermelha” em determinados encontros políticos em que o verde e amarelo predominam, eu fico pensando, qual o problema com a cor? Eu sou torcedor do Internacional de Porto Alegre desde criança e minha bandeira sempre foi vermelha (e branca). Mas por que chegamos a este ponto?

As bandeiras como símbolos nacionais são um fenômeno relativamente recente. O uso de estandartes remonta ao exército romano, mas em geral eram utilizados para identificar as diferentes legiões. Com a formação do Estado Moderno, a evolução para o uso de bandeiras em geral serviu a um propósito militar, de diferenciar os exércitos ou os navios em batalhas e suas cores reproduziam as dos brasões dos monarcas aos quais serviam.

O uso de bandeiras como símbolos nacionais somente se expandiu no século XIX. As repúblicas nascidas da independência nas Américas necessitavam novos símbolos e os monarcas europeus, ao perderem os poderes absolutos, deixaram de ser os donos das cores nacionais para se tornarem apenas mais um símbolo da existência do país. A Union Jack deixou de ser a superposição dos santos de devoção dos reinos unidos na Grã Bretanha para ser o símbolo do Império Britânico.

Neste processo, Dom Pedro I pediu a Debret para desenhar uma nova bandeira para o país recentemente separado de Portugal, optando pelo verde como cor principal. Uma ruptura com a representação do Brasil como Reino Unido de Portugal, que era uma esfera armilar dourada sobre fundo branco (esta esfera foi parar na bandeira republicana de Portugal, a partir de 1911 – seriam saudades do Brasil?). Justificativas para o simbolismo do verde e o amarelo são posteriores. No fundo, eram as cores disponíveis na paleta de um pintor francês.

Proclamada a República em 1889 e na falta de um símbolo inequívoco do movimento republicano – uma das propostas era de uma versão verde e amarela das estrelas e listras dos Estados Unidos da América (afinal éramos os Estados Unidos do Brasil), outra a bandeira que depois se tornou a bandeira do Estado de São Paulo – seguindo a tradição brasileira de rupturas, sem romper com o passado, a nova bandeira herdou a base da bandeira imperial, com o fundo verde e o losango amarelo, substituindo as armas do imperador por um globo azul com estrelas e um dístico com o lema positivista, o que por muito tempo causou revolta dos setores católicos. Também herdamos a música do hino nacional imperial, mudando a letra.

O século XX se tornou o século das bandeiras e dos hinos. Eventos como as Olimpíadas e os campeonatos mundiais de futebol (mais recentemente os campeonatos de Fórmula 1) criaram cerimoniais que fizeram destes símbolos o centro da atenção. O televisionamento via satélite a partir dos anos 1960 somente ampliou sua importância. Quanta lágrima derramada, quanto orgulho nacional incutido na juventude ao ver a bandeira hasteada e o hino tocando ao receber uma medalha de ouro? Simbolismo importado quando Emerson Fittipaldi ou Ayrton Senna ganhavam uma corrida por uma empresa britânica.

Embora o nacionalismo tenha sido ao longo do último século um dos elementos característicos dos movimentos de extrema direita, o orgulho nacional não é um monopólio dos fascistas. Como entender, então, a captura dos símbolos nacionais pelo bolsonarismo nos últimos anos?

Existem múltiplos fatores para isto. De um lado, temos a Guerra Fria, na qual o vermelho foi demonizado como a cor do inimigo comunista. Durante nosso período autoritário anterior, instaurado em 1964, os símbolos nacionais (incluída a seleção brasileira de futebol) foram explorados como monopólio do regime. Brasil, ame-o ou deixe-o! A redemocratização, com o movimento das Diretas Já! começou a resgatar o hino e a bandeira como símbolos que pertencem ao povo e não aos quartéis. Mas ao lado do verde e amarelo andavam os símbolos dos partidos e sindicatos, com a presença do vermelho.

O vermelho, adotado pelos jacobinos na revolução francesa, se tornou um contraponto ao nacionalismo e ao imperialismo do século XIX, como símbolo dos movimentos de trabalhadores por melhores condições de vida, baseados na solidariedade para além das fronteiras nacionais. Foi adotado por países que realizaram revoluções socialistas, como a União Soviética e a China, mas também é compartilhado por diferentes movimentos políticos, que vão dos trabalhistas britânicos aos anarquistas italianos (de onde, diz a lenda, acabou na bandeira do meu Inter). Irônico que também seja a cor que identifica o Partido Republicano dos Estados Unidos da América.

A nossa versão particular da guerra fria iniciou em 2013, no movimento pela derrubada de Dilma Rousseff. O verde e amarelo predominou nas manifestações pelo impeachment, não porque seus participantes fossem melhores brasileiros do que os que defendiam a Constituição, mas porque careciam de um partido ou organização política com cores concretas com as quais se identificar. O herdeiro indireto dos resultados do movimento, Michel Temer, preferiu o azul e não o verde e amarelo para símbolo do seu governo.

O que faz de Bolsonaro o herdeiro direto do discurso golpista da época (os cartazes nos comícios atuais pedindo “Intervenção Militar Constitucional” podem ser os mesmos de 2015, guardados por algum tempo no armário). Ao não ter partido, não tem cor a qual se filiar, se apropriou da bandeira nacional.

Mas este também é um erro dos partidos de esquerda. Se estes tivessem mantido os símbolos nacionais presentes em cada uma de suas manifestações, misturando, como em 1984, o vermelho com o verde e amarelo, na defesa da democracia, teria sido possível ver a bandeira nacional em um carro ou janela de uma casa como identificação de uma posição ideológica e não comemoração por uma vitória de brasileiros em alguma competição internacional.

No esporte cada um pode ter suas cores. Minha bandeira é vermelha e a de meu vizinho é azul, preta e branca, sem que eu pense que ele defende a Estônia. Mas as cores de meu país não pertencem a um grupo de que cor ideológica seja. Temos de começar já a recuperação de nossos símbolos, impedindo que eles sejam identificados nas novas gerações, com o autoritarismo, como já foram entre 1964 e 1985. Este é um trabalho para todos, de direita ou de esquerda, que realmente amam o Brasil. Ninguém é dono do verde e do amarelo. São de todo o povo brasileiro.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Maria Eduarda M. E Souza.

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