Há os que têm medo de mim, aos montes. Há, também, os que me aguardam, suplicantes. Também os que me buscam, ainda nem sempre se deem conta disso. E há os que me veneram, que me desejam de um jeito estranho, que me querem por perto, mas não tão perto. Amam meus espetáculos, o drama de minhas aparições, a estética da minha arte. Querem me ver, mas não me sentir. Seja por qual motivo for, ninguém é indiferente a mim. E poucos são os que me compreendem. Sou aquela que faz a passagem entre o mundo dos vivos e o dos mortos, indiferentes às carnes, nervos, fluídos e outras materialidades tão desesperadamente tidas como necessárias por todos aqueles que respiram. Sou o barqueiro sem rosto que conduz as almas ao seu próximo destino, atônitas, ainda perdidas de seus corpos. Poucos são os que me acompanham com placidez.
Eu entendo os que me temem. Pelo apego a este mundo vão, em que tudo é vaidade. Apego às coisas e pessoas que conquistou durante a vida e que, por minha obra, não mais as terão. Pensam que por minha causa perdem tudo, mas comigo descobrem que só há vida nas coisas que sentiram e pensaram, não nas que têm. Temem o sofrimento a que me associam. Pelo nojo das carnes mortas. Pelo horror dos cadáveres. E, sobretudo, pela incerteza do que seja a morte.
E são justamente os mais indiferentes ao sofrimento e ao desespero dos que conduzo que acreditam me venerar. Amam, silenciosos, os suplícios derradeiros porque se sentem imunes. Porque a tomam como uma dor só do outro. De um outro muito distante deles, como se a distância social tornasse suas vidas diferentes a meus olhos.
Dentre estes, há os que me entregam as vidas de outros, mas não como antigamente se fazia, em rituais de sacrifício e veneração ao meu poder. O fazem com o sacrifício dos outros, em veneração própria. Sacrifício dos que lhes incomodam. Dos que acreditam poderem descartar como se fossem nada. Como se a vida valesse nada. Não significasse nada. Fosse nada. Em sua estranha veneração, sou aquele que lhes livra de um incômodo. Que do horror que se sente ao testemunhar as formas da matéria morta, tiram o seu poder sobre os homens. Como se eles fossem a própria morte. Roubam de mim o temor que se tem de mim. Como se fosse deles o império sobre tudo que respira.
Alguns destes ladrões do meu terror balearam Marielle e Anderson. Obrigaram-me a desprender suas almas de seus corpos, tornados inúteis à vida terrena. É meu ofício. Fiz como sempre faço na condução dos jovens cujas vidas foram injustamente abreviadas. Conduzi com cuidado. Vi o olhar de tensão e satisfação dos assassinos. Coisa dos seus corpos, da adrenalina e da endorfina. De seus espíritos, só os sentimentos baixos se podem ver. Os que constituem o desperdício de suas vidas.
Ainda ouço os cânticos daquelas mortes. Lamentações de quem os amava e também as cruéis indiferenças à vida de quem, com sarcasmo ou cinismo, comemora a partida precoce e violenta de quem, por algum motivo vão, não gostava. Gente que atribui valor a uma vida pelo quanto ela pode ser útil às satisfações e prazeres de sua vida. Acham que me veneram ao dilacerarem corpos alheios. Tolos! Não entendem que eu sou parte da vida. Sou momento. Uma vírgula e não um ponto. E que viver bem e fazer viver bem é verdadeiramente venerar-me. Não deveriam temer a mim, que sou inevitável, mas o desperdício de se viver uma vida assassina. De causar e aguardar a morte numa vida já sem vida.
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Ilustração: Mihai Cauli
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