Sem os obstáculos que o seguraram no primeiro mandato, Trump se sentirá livre para fazer o que quiser e a Oligarquia pedir.

I

A capacidade de certos ideólogos (eles se apresentam como especialistas ou analistas) imaginarem e proporem cenários favoráveis aos seus argumentos ultrapassa muitas vezes a imaginação dos mais bizarros, rocambolescos e inverossímeis roteiros de Hollywood – sem que sequer corem. Tem de ser muito engenhoso o truque para juntar num mesmo bando (uma determinada oligarquia) poderosos bilionários e políticos ocidentais como Trump e Elon Musk com gente como Vladimir Putin e, até, pasmem, o secretário-geral do Partido Comunista Chinês Xi Jinping. (Nós, sim, possivelmente coremos.) Nesse esforço, vale inclusive detalhar um plano – e expô-lo, quem sabe em powerpoint – no qual o presidente russo manipula escancaradamente seu colega estadunidense para que este, Donald Trump, se torne um fervoroso defensor dos interesses… russos. Como suponho que a essa altura possam estar imaginando que devo estar forçando a barra, cito, literalmente, o trecho de uma entrevista dada por Fiona Hill, uma ex-assessora de Trump na Casa Branca (Político, 28/10/24). Quando a entrevistadora pergunta “O que Putin quer de Trump?”, a resposta da sra. Hill é a seguinte: “Putin deixou bem claro seu interesse nos Estados Unidos. Ele fala sobre isso o tempo todo. O que ele quer é o enfraquecimento dos Estados Unidos. Ele quer os Estados Unidos fora dos assuntos internacionais. E pode-se supor que, se ele está conversando com o presidente Trump, o que está tentando fazer é impor suas preferências, seus interesses (…). Putin não se importa com o povo americano. Ele não se importa com o presidente Trump. O que realmente lhe interessa são as posições da Rússia e seus próprios interesses. Putin quer ver os Estados Unidos fracos. Num eventual tête à tête, ele estará sempre emitindo sinais que enfatizem suas preferências – aconselhando, talvez persuadindo, Trump a agir ou se pronunciar de determinadas maneiras. Infelizmente, esses sinais podem estar surtindo efeito – muitas das declarações que o presidente Trump e as pessoas ao seu redor, como o candidato a vice-presidente J.D. Vance, fizeram sobre a guerra na Ucrânia soam exatamente como as declarações que Putin fez sobre suas preferências quanto ao desfecho do conflito.” Não se deixe paralisar pelo escandaloso nível das platitudes tipo: “Putin não se importa com o povo americano”. E acaso deveria? É esse o papel de um presidente da Rússia? “Não se importa com o presidente Trump… O que realmente lhe interessa são as posições da Rússia e seus próprios interesses”. E não é para isso que existem os dirigentes, sejam de que tipo forem, de cada país? Justamente para defenderem seus próprios interesses e os dos seus compatriotas? Ou será que perdi alguma coisa? Desconsidere, deixe-as de lado para que possamos manter o foco no argumento de que uma nova liga esteja atando a ação política de Trump a Musk e Putin – e, até, repito, Jinping.

II

A essa nova liga, a ex-conselheira de Trump e agora analista independente Fiona Hill dá o nome de Oligarquia. Até certo ponto, a análise da sra. Hill faz sentido. Faz todo o sentido do mundo. Não é de hoje que os muito ricos estão se tornando absurdamente ricos e nessa mesma medida vão constituindo uma minúscula casta em escala planetária – para eles, tanto quanto para o capital, não existem fronteiras, não existem países, suas pátrias são suas empresas e, de fato, o volume de suas fortunas muitas vezes ultrapassa o de não poucos países. E, de novo, a analista Hill, corretamente assinala, por exemplo, esse internacionalismo capitalista. Embora saibamos todos quantos são e quem são, às vezes ignoramos tudo o que possuem e até onde vai seu poder de mando. Quantos de nós éramos cientes, até a semana passada, por exemplo, que o dono da Amazon era quem decidia em última instância, ele, e apenas ele, o que o poderoso The Washington Post publicava ou deixava de publicar? Isso é assim porque, em 2013, Jeff Bezzos pagou aos herdeiros de Katharine Graham (a diretora e dona do Post à época do Watergate e da publicação dos Papéis do Pentágono) 250 milhões de dólares e se tornou o único proprietário de um dos mais influentes diários dos Estados Unidos. Esses bilionários, a quem conhecemos perfeitamente pelo nome, de cor e salteado, e que para muitos são verdadeiros semideuses, emitem sinais contundentes de que estão atuando ou se preparando para atuar como uma oligarquia planetária. Não será preciso, não pelo menos no horizonte visível, que numa espécie de ficção hollywoodiana eliminem os governos nacionais mais ou menos democraticamente eleitos e as instituições às quais nos habituamos: parlamentos e eleições mais ou menos livres e democráticas, cortes de justiças e cortes supremas que atuam com independência, meios de comunicação… bem, meios de comunicação mais ou menos livres e relativamente independentes, etc. Eles se meterão nelas às vezes pelas portas reservadas às visitas extremamente ilustres, ou pelos recados enviados através dos jornais que controlam, ou por indicados nomeados para atuarem nas sombras do aparato do Estado, como sempre fizeram. O certo, e o novo, é que a pressão do torniquete está sendo redobrada, modificando a qualidade da relação. De agora em diante, serão eles mesmos os executivos a cargo dos negócios do Estado e tornando o Estado uma parte dos seus negócios, um pedaço de suas empresas.

III

O que não faz nenhum sentido é juntar num mesmo bando oligárquico gente como Musk e Trump com Putin e, muito menos, por óbvio, Xi Jinping. Pela simples e boa razão de que a liga que forma uma oligarquia é a riqueza, a riqueza e a dimensão dessa riqueza. Não resta dúvida de que Putin se tornou um autocrata muito rico desde que assumiu o poder um quarto de século atrás, em maio de 2000. Mas não enxergar as diferenças entre um bilionário como Musk, Bezzos ou Trump e um funcionário do Estado que, graças ao exercício do poder, acumulou bens e luxos principescos é ou uma estupidez muar, o que não parece ser o caso, ou uma mal dissimulada intenção de forçar a defesa de interesses não confessados. Afinal, que tipo de liga uniria a oligarquia criada pela argumentação da analista Hill? A de todos os mais ou menos ricos do planeta? De tal modo que nela deveria caber, além dos já citados, incluído o secretário-geral do PCC, também figuras… bem, acrescentem por favor qualquer sujeito mais ou menos rico que lhes venha à memória e de acordo com os critérios que julguem convenientes. Porque foi exatamente o que fez a analista Hill ao juntar os dois bilionários com o autocrata russo.

IV

Mesmo assim, a ideia de que a oligarquia está deixando de ser um simples registro histórico para se tornar uma realidade, uma brutal realidade na sociedade do século XXI, não pode ser jogada na lata de lixo por conta da lente distorcida e interessada da analista Hill. Muito pelo contrário. Isso se tornou tão evidente que a própria analista Hill às vezes nos surpreende quando, por exemplo, associa o controle do poder pelas oligarquias com o exercício autocrático do poder e o enfraquecimento do Estado de Direito. E no que diz respeito aos Estados Unidos, os muito ricos controlam o poder cada vez mais como uma espécie de casta, um bando muito reduzido, uma Oligarquia – e não é de hoje e não é apenas através do partido Republicano. Os Estados Unidos estão se tornando uma oligarquia já faz tempo, pouco importa quem ocupe a Casa Branca, se a Administração, como gostam de dizer, é Republicana ou se é Democrata – talvez por isso interesse tanto à analista Hill introduzir Putin no balaio onde muito corretamente havia jogado Musk e Trump, quem sabe acreditando que o truque produza uma máscara capaz de livrar a cara de um dos lados do bando. (Continua no próximo domingo.)

P.S. – Resposta para situações estatísticas de dificílima previsibilidade

A sugestão da personagem de Kirsten Dunst Justine, do filme Melancholia, para quando nos depararmos com uma situação de radical empate técnico numa pesquisa é praticamente infalível. Numa conversa muito íntima e muito dolorosa com sua sempre prática e otimista irmã Claire, ela disse que sempre deveríamos levar em conta que “A Terra é má…”. Aliás, por isso mesmo, prosseguiu Justine, “não precisamos nos lamentar por ela… ninguém sentirá falta dela.” Há quem discorde, é claro. Há quem pense, por exemplo, que entre os dois eternos rivais nas disputas pela presidência dos Estados Unidos não há diferenças substanciais e é difícil saber quem é o bandido, quem o mocinho. Considerado todo o panorama e a história recente, não há como recusar-lhes certa dose de razão.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler “O day after com Trump“, do autor.