Em artigo publicado no jornal espanhol El País no ano passado, Slavoj Zizek, famoso e polêmico filósofo marxista, afirmou que a pandemia da Covid-19 obrigará governos a reverterem a agenda de políticas neoliberais. Segundo sua hipótese ocorreria o seguinte: uma rejeição da opinião púbica em direção ao princípio de mercado livre e, portanto, contra a não intervenção estatal na economia. A premissa do autor é de que a agenda neoliberal, que tem sido incorporada praticamente em todo o ocidente viria a colapsar, e em seu lugar tomaria forma o Estado eficiente e presente preocupado com a saúde, educação e políticas sociais; e realmente com a crise sanitária se tornou muito claro às pessoas o quanto é importante a ampliação do atendimento do tão vilipendiado Sistema Único de Saúde (SUS) e a compra e fabricação de vacinas pelo governo.
O Estado mínimo falhou em apresentar respostas rápidas e eficazes no combate ao vírus. Isso quando este não assume práticas e discursos anticientíficos, negacionismos e falsos paralelismos, como a escolha entre saúde ou economia; infelizmente caminho adotado pelo Brasil e pelo seu dirigente, que com toda razão ganhou a alcunha de “genocida”, por tratar com desprezo e irresponsabilidade as mortes que assolam o país. Mesmo governos conservadores e ultraliberais como a Inglaterra interviriam por meio de acesso à renda básica e de criação de pacotes de resgate às empresas. Nos Estados Unidos, o Tesouro já disponibilizou desde o começo da pandemia cerca de 3 trilhões de dólares no combate à pandemia na forma de crédito às empresas e de auxílios emergenciais à população.
Resta saber, contudo, se a subordinação do mercado à sociedade não seria apenas temporária. O modo de ser e de operar da razão neoliberal eliminou o Estado de bem estar social e as antigas coalizões de classe desapareceram diante da reorganização das sociedades pela imposição do mercado livre e da mercantilização dos serviços públicos e dos bens comuns. O Estado se torna instituição de coordenação e operacionalização, em última instância, do interesse financista. O Estado é disciplinado a partir das regras impostas por este mesmo interesse. Nesse tipo de regulação social, greves e paralizações são secundárias e menos significativas do que a letalidade da fuga de capitais e a destruição em massa que causam a curto prazo.
O período dos governos petistas não inverteu a lógica rentista que espolia o Estado brasileiro, mas se caracterizou pela formação de um pacto com a banca das finanças. Foi através da construção da conciliação de classes, que se sustentou até a crise de 2013-2014, e que abrangeu esse setor, que pudemos assistir a uma década de estabilidade política e econômica.
Tal configuração, decorrente de contexto econômico internacional favorável à expansão do capital até meados de 2012-2013, propiciou benesses ao mercado financeiro: numa série histórica de recorde de ganhos financeiros e de entrada de capital estrangeiro, operações de abertura de capital na bolsa e queda do risco país na era Lula, o que possibilitou investimentos públicos e criação de políticas sociais, bem como aumento salarial. Não parece haver pacto possível com esse setor, e não há coalizão progressista possível que não passe pelo seu enfrentamento. O problema é que tal pacto feito no passado não poderá se repetir diante de um contexto geopolítico e econômico desfavorável e embebido em profunda crise capitalista como a que estamos vivendo.
E o papel da grande mídia? Como definir? Ela capta e expressa os interesses de uma elite que a controla e a financia. A grande mídia, controlada por poucas empresas, – aliás, no Brasil, um dos sistemas de telecomunicações mais monopolizado do mundo, e que tem como um de seus principais representantes a Rede Globo, cobrem mais de 70% do território nacional -, comunica as práticas da boa agenda econômica e dissemina conceitos tais como “custo brasil” e “empreendedorismo”. A Rede Globo possui como toda grande corporação, operações em mercado financeiro. Trata-se de formação do imaginário coletivo: a realização incessante da criação de uma subjetividade para o capital e seus interesses, incutindo diariamente a necessidade de eliminação do Estado de bem estar social e da luta por justiça e igualdade social.
Voltando à questão de quais seriam as rachaduras geradas na sociedade neoliberal pelo coronavírus, não podemos ainda responder em sentido positivo. Depois dos gastos públicos, não haverá a continuidade de mais privatizações e de mais austeridade, um dos vetores dos ganhos financeiros e imediatos? Somando-se ademais com o retorno da desigualdade de renda e aumento da pobreza? A derrotada tentativa de quebra de patentes, que o Brasil se negou a apoiar, traria alívio às contas públicas e a possibilidade de países pobres comprarem e fabricarem imunizantes bem mais baratos e não se endividarem.
Certamente existem fatores de ordem social e política (eleições, construção de frentes partidárias e organização da sociedade civil) não previsíveis e em constante movimento que podem alterar a correlação de forças e os rumos de nosso futuro. O vírus apenas expõe a imprudência e decadência do capitalismo global, que arde e se deteriora vertiginosamente. O risco que corremos nesse momento é o de que para além de novas ondas pandêmicas, sobre as quais muitos biólogos e epidemiologistas advertem e as quais se tornarão tendência em razão da degradação ambiental planetária e da globalização, surjam novas odes financeira-especulativa ainda mais revanchistas e virulentas do que as atuais.