O governo federal acaba de apresentar uma proposta de emenda constitucional para mudar as regras constitucionais sobre segurança pública. Resumida em uma frase, a proposta aumenta, muito, as atribuições da União na matéria e – em decorrência – restringe as atribuições estaduais. Vejamos que propostas são essas e se são positivas.
HOJE: A QUEM CABE FAZER O QUÊ?
Para entender as mudanças, é preciso lembrar que hoje quem tem o maior volume de responsabilidades em matéria de segurança pública são os estados. Sãos estaduais as polícias civil e militar, responsáveis, respectivamente, pela investigação dos crimes (“já cometidos”) e pelo policiamento ostensivo (ou seja, por evitar que crimes aconteçam), assim como a recentemente denominada polícia penal, responsável pela guarda dos presídios estaduais.
Já à União, por meio da polícia federal, cabe investigar apenas os denominados crimes federais (crimes contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações, cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme; prevenir e reprimir o tráfico ilícito de drogas, o contrabando e o descaminho), além de exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras. A União também conta com a polícias rodoviária e ferroviária federal, destinadas ao patrulhamento ostensivo das rodovias e ferrovias federais.
A União também conta com a possibilidade excepcional de acionar a denominada “força nacional” que é composta de policiais estaduais (civis e militares) que se deslocam temporariamente para outros estados (com parte do custeio assumido pela União) e pode, de forma ainda mais excepcional, mobilizar as forças armadas para ações de segurança interna, nas denominadas operações de garantia da lei e da ordem, conhecidas pela sigla “GLO”.
Uma nota sobre o município, que tem ganhado destaque em matéria de segurança pública, com a estruturação das guardas municipais; mas estas, a rigor, se limitam à proteção de bens, serviços e instalações dos próprios municípios (por exemplo, provendo segurança para escolas públicas).
Essas são as competências executivas ou materiais, ou seja, são as competências para fazer alguma coisa e, neste ponto, como vimos, os grandes protagonistas são os estados. Ao lado delas existe a competência legislativa, ou seja a competência para aprovar leis que irão guiar e limitar aquilo que deve ser feito. Essencialmente, o trabalho das polícias aplica a legislação penal e processual penal e essa matéria é de competência legislativa exclusiva da União. Por outro lado, a Constituição não diz explicitamente quem pode legislar sobre segurança pública, aqui entendida como política de segurança pública, o que significa que cada ente (União, estados e municípios) poderá legislar sobre o tema desde que tendo em vista apenas sua parcela de atribuições dentro da segurança pública.
O QUE PRETENDE A PEC?
A PEC pretende ampliar a (já enorme) lista (art. 21 da Constituição) de atribuições materiais da União para incluir a competência para: “estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário, instituindo o plano correspondente, cujas diretrizes serão de observância obrigatória por parte dos entes federados, ouvido o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social ….” e para “coordenar o sistema único de segurança pública e defesa social e o sistema penitenciário …”
A PEC também amplia as competências materiais da União por meio da ampliação das competências da polícia federal e da polícia rodoviária federal. A Polícia Federal passaria a ficar responsável pela apuração de crimes em detrimento das “matas, florestas, áreas de preservação, ou unidades de conservação”, assim como pelos crimes cometidos por “organizações criminosas e milícias privadas”. Este, já adiantamos, nos parece o aspecto mais positivo da proposta. Já a Polícia Rodoviária Federal seria rebatizada como polícia ostensiva federal, destinada ao policiamento ostensivo em “rodovias, ferrovias e hidrovias federais” (a polícia ferroviária federal seria formalmente extinta) e poderá, também, “exercer o policiamento ostensivo na proteção de bens, serviços e instalações federais; e prestar auxílio, emergencial e temporário, às forças de segurança estaduais ou distritais, quando requerido por seus governadores”.
Dentro da mudança de competências materiais, a PEC pretende incluir um item na lista (art. 23 da Constituição) de competências comuns da União, estados e municípios, que seria a de “prover os meios destinados à manutenção da segurança pública e defesa social nas respectivas áreas de competência”.
A PEC também amplia a atribuição da União para legislar ao incluir “segurança pública e defesa social” na lista (art. 24 da Constituição) de matérias sobre as quais a União e os estados legislam de forma concorrente com a União, devendo se limitar (mas nunca se limitando) a adotar “normas gerais” e os estados suplementando tais normas.
Finalmente, a PEC insere na Constituição o “Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, com o objetivo de garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social, sendo vedado o contingenciamento de seus recursos”.
A PEC É BOA?
Para responder à pergunta, temos que fazer outra: concentrar poderes na União é bom ou ruim para assegurar um melhor exercício de determinada competência? A resposta a esta pergunta acaba sendo influenciada pela preferência política do interlocutor. Aquele que se identifica com as políticas do atual governo federal, provavelmente verá com simpatia a concentração de poderes na União e vice-versa para os que não gostam.
Este raciocínio, obviamente, é perigoso, pois os governos mudam. Vejamos o exemplo da área ambiental, onde os estados sempre tiveram certo protagonismo até que movimentos ambientalistas passaram a apostar numa maior concentração de poderes na União (uma vez que sucessivos governos federais vinham sendo mais engajados nesta temática), em desfavor dos estados. Até que veio o governo Bolsonaro e seu desprezo pela agenda ambiental e a aposta centralista demonstrou todo o seu risco.
Em suma, a resposta à pergunta deve procurar verificar com que ente (União, estados e municípios) deve ficar uma atribuição, levando em consideração que a orientação política e ideológica deste ente pode mudar ao longo dos ciclos eleitorais.
Pois bem, o Brasil é uma federação, portanto (ao contrário de estados unitários) ele aposta na existência de centros distintos de poder, com capacidade para escolher seus próprios governantes e executar suas políticas. Nossa federação (se comparada aos E.U.A., à Alemanha, e até mesmo à Argentina) já se caracteriza por uma super concentração de poderes na União sem paralelo em outras federações. Ainda assim, ainda somos – por enquanto – uma federação e isto (além de uma imposição constitucional) nos parece positivo.
Isto porque o federalismo, é importante dizer, permite a experimentação e a maior proximidade dos tomadores de decisão aos afetados por esta decisão. Assim, devemos indagar se faz sentido concentrar mais poderes em Brasília. Da forma como está redigida a PEC, a União vai passar a ser a grande protagonista na segurança pública. O governo federal não vai escolher os comandantes das polícias, mas vai dar ordens a eles (as tais “diretrizes” da “política nacional de segurança pública” que serão “de observância obrigatória por parte dos entes federados”). Aliás, poderá dar ordens – compre tais equipamentos, por exemplo – mas caberá aos estados pagar por eles. Claro que ainda restará algum espaço de comando nos estados, mas ele – é preciso que se diga claramente – será muito reduzido.
A segurança pública no Brasil está muito mal. Há índices assustadores de criminalidades em vários estados. No entanto, se o essencial desta responsabilidade é dos estados, a União também tem falhado naquilo que já é de sua competência, como evidencia a enorme quantidade de armas contrabandeadas para o Brasil, na prática de um crime que – hoje – já cabe à polícia federal reprimir.
Aumentar as atribuições da polícia federal na tutela do meio ambiente (nas vastas extensões de unidades de conservação federal) nos parece fazer todo sentido e, mais ainda, atribuir à polícia federal a atribuição para investigar as milícias, cuja relação com as polícias estaduais torna muito problemática a sua repressão.
Mas, sujeitar as polícias e guardas municipais de todos os estados e municípios ao comando estratégico do governo federal nos parece uma aposta extremamente arriscada. Uma aposta que pode, com uma mera eleição, significar uma orientação completamente distinta. Basta lembrar que, se esta emenda estivesse em vigor no governo Bolsonaro, as polícias estaduais estariam sob o comando de um ministro da Justiça acusado de conspirar contra a democracia brasileira.
Em suma, da forma como está, a PEC, embora tenha aspectos positivos, joga todas as fichas da segurança no governo federal. Acreditamos que isto é arriscado demais. Que venha o debate.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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