Desde que teve início a sedimentação da industrialização brasileira, no final da década de 1950, a política externa brasileira vinha sendo elaborada sobre a base de duas diferentes percepções da inserção internacional do país: a liberal-cosmopolita e a nacionalista. Para ambas as percepções, o Brasil se situa num ponto médio da escala hierárquica do sistema, havendo superado a situação de país completamente subdesenvolvido, mas carecendo de maiores esforços para atingir níveis mais aceitáveis de desenvolvimento econômico-social. E a racionalidade da política externa consistiria em criar e explorar condições externas para dar consecução a esse objetivo.

De acordo com a percepção liberal-cosmopolita, esse esforço deve estar concentrado no campo econômico, respeitando-se as regras do mercado. Isso tem implicado intensa participação nas relações internacionais, enfatizando-se a importância das boas relações com os países industriais avançados. A ênfase se justificaria pelo fato de serem esses países os que apresentam os mais amplos mercados consumidores para as exportações brasileiras, ao mesmo tempo em que geram os maiores excedentes de capitais que podem ser investidos produtivamente no Brasil e, enfim, porque são os que exercem controle sobre as instituições econômico-financeiras internacionais.

A ascensão da China à condição de país industrial avançado em nada altera a percepção economicista dessa vertente, apesar da desarmonia político-ideológica com o Partido Comunista que governa aquele país. Essa corrente também se caracteriza por considerar muito importante a participação do Brasil nos foros multilaterais, por entender que as organizações intergovernamentais e as organizações não-governamentais contribuem significativamente para a governabilidade internacional.

A percepção nacionalista difere dessa posição porque acredita que a ordem internacional liberal criada pelos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial apresenta aspectos que são empecilhos para o processo de desenvolvimento. Nesse sentido, além da importância das boas relações com os países desenvolvidos, essa corrente considera indispensável formar coalizações com outros países “em desenvolvimento”, para que, juntos, possam forçar mudanças de interesse comum na ordem internacional. A participação nos organismos multilaterais cada vez mais fortalecidos teria, assim, significado estratégico, porque permitiria evitar as relações bilaterais com interlocutores mais poderosos e com maior capacidade de se impor nos diferentes tabuleiros de negociação.

As relações cooperativas com os países vizinhos da América do Sul e com os países de expressão portuguesa são igualmente vistas como indispensáveis, visto que, para se projetar como liderança confiável nos espaços de confrontação com os países desenvolvidos, faz-se necessário esse respaldo geopolítico e cultural. O governo Bolsonaro promoveu brusca mudança nesse quadro.

Sob a liderança do chanceler Ernesto Araújo, um diplomata de carreira, a realidade econômico-social do Brasil deixou de ser referência para a política externa, assim como as tendências do sistema internacional passaram a ser desdenhadas. Em troca das visões liberal-cosmopolita e nacionalista, que, para o bem ou para o mal, são expressões dos interesses nacionais brasileiros, o chanceler passou a executar uma política externa fundada em ideias vagas e indecifráveis de defender o mundo cristão ocidental contra o globalismo e contra o marxismo cultural. Os problemas econômicos e sociais, as contradições, as deficiências e as virtudes do país deixaram de preencher a agenda diplomática do país.

O ponto de apoio para essa desastrada virada foram as ideias da direita do Partido Republicano e a própria política de Donald Trump. Uma curiosa mescla distante anos-luz da realidade brasileira. As ideias da ultradireita norte-americana agasalhadas pela cúpula brasileira provêm de Steve Bannon, um empresário ligado à mídia norte-americana e conselheiro de Trump, e de Olavo de Carvalho, um escritor direitista muito influente em alguns meios brasileiros. Essas ideias são marcadamente libertárias, sionistas, sexistas, defensoras da supremacia branca, xenófobas. Basicamente cultivadas no sul dos Estados Unidos pelos admiradores dos Confederados, tais ideias encantam alguns setores da direita brasileira, como o direito de portar armas, que foi um dos pontos fortes da campanha de Bolsonaro à Presidência.

A aversão à China é, decerto, o sentimento mais fortemente compartilhado por esses setores, seja devido ao Partido Comunista Chinês, seja simplesmente por xenofobia. A política externa de Trump, objeto de admiração dessa cúpula, caracterizou-se pelo isolacionismo, expresso no slogan America first. Uma admiração insólita, pois Trump nunca esteve preocupado em granjear aliados. Seu programa visava, primeiramente, confrontar a China, por entender que a economia chinesa decolou em decorrência de indevidas facilidades obtidas pelos chineses junto aos governos anteriores.

Em segundo lugar, visava retirar os EUA dos foros multilaterais, considerando que o país perdera mais que ganhara nesses espaços. Para ele, o significado de America first era a prevalência dos interesses dos EUA em qualquer circunstância, e não, como muitos equivocadamente interpretaram, os EUA como líder hegemônico. Por isso, ele mesmo considerava estranho e risível o fascínio de Bolsonaro, de seus filhos e de Ernesto Araújo por ele. Trump nunca se preocupou em ter aliados, por isso mesmo nunca hesitou em ignorar esse fascínio e atropelar os interesses brasileiros em favor de seus interesses, sempre que considerou oportuno e necessário.

A partir dessa posição de princípio de servidão voluntária aos interesses dos Estados Unidos, e também por não ter sofrido nenhum veto interno, quer pelas repetidas infrações constitucionais, quer por contrariar importantes setores empresariais, a política externa de Bolsonaro pôs gratuitamente abaixo todo o patrimônio acumulado, sem contrapartida de qualquer espécie.

As relações com a China foram as primeiras atingidas. Principal parceira econômica do Brasil, para a qual vende produtos primários e compra produtos de alta complexidade produtiva, a China passou a ser abertamente hostilizada pelo governo. A pública intenção de rejeitar tanto a tecnologia 5G como a vacina contra a Covid-19 tem criado consecutivos atritos com os chineses.

Embora os chineses entendam bem o que se passa e sejam pacientes, o fato é que o desentendimento diplomático tem transformado a antiga parceria estratégica com o gigante asiático numa reles dependência econômica de tipo colonial. A parceria que poderia resultar em benefícios tecnológicos e industriais foi completamente anulada, para satisfação dos norte-americanos.

A caricata participação brasileira no Brics é prova desse transtorno político. Na América do Sul, a insistência em se apresentar como pau-mandado dos Estados Unidos tem criado situações desnecessariamente difíceis com os países vizinhos, que resultaram na desestruturação do projeto integracionista da Unasul e no debilitamento do Mercosul.

As provocações feitas à Venezuela, inclusive com ameaças de uso da força militar, e as constantes descortesias antidiplomáticas com a Argentina criam instabilidade na fronteira, em decorrência do apoio militar da Rússia e da China à Venezuela, e criam problemas econômicos com a Argentina, importante parceira comercial do Brasil. A arrogância e a incrível inabilidade política com que a diplomacia brasileira tem defendido o que considera de interesse nacional tem isolado o país nos foros multilaterais e o colocado como autêntico pária entre as nações.

A desastrosa política ambiental e a polêmica em torno dessa questão com o presidente da França Emmanuel Macron, junto com as injustificadas ofensas à sua esposa, longe de representarem qualquer êxito, colocaram o país definitivamente na berlinda, ameaçando as exportações do agronegócio. O mesmo comportamento diplomático assumido em relação a questões praticamente consensuais no concerto das nações, como respeito aos direitos das mulheres e respeito aos direitos das minorias, reforça essa posição de pária internacional, embora o chanceler tenha se pronunciado publicamente diante dos jovens diplomatas que se iniciam na carreira afirmando que essa condição lhe é indiferente.

Por fim, ainda não se sabe como as relações com os Estados Unidos irão evoluir quando o mandato de Biden começar. É de se crer que a política antichinesa seja mantida, pois deve ser do agrado de Biden. O problema de Bolsonaro é que a diplomacia formal dos EUA retomará seu protagonismo, voltando as subterrâneas instituições do Estado norte-americano para as sombras, ao mesmo tempo em que Biden terá que prestar satisfações à sua base política, especialmente aquelas voltadas para as temáticas relacionadas aos direitos humanos.

Este artigo foi originalmente publicado no Jornal dos Economistas, ed. 377 de Jan-2021. Ver: https://www.corecon-rj.org.br/jornal.php