Durante esse período de pandemia da Covid-19, temos observado comportamentos variados dos seres humanos expostos ao risco claro do adoecimento e provável morte. Enquanto que a ciência, a epidemiologia e as práticas médicas indicam com estudos amplos e resultados contundentes que o caminho para evitar o risco é o distanciamento social (e quando for possível, o isolamento), o uso de máscaras protetoras e a higienização das mãos, percebemos que por diversos motivos o comportamento dos indivíduos se dá em outro sentido.
Já temos resultados de estudos que mostram a influência dos líderes políticos na atitude da população e aumento da contaminação do novo coronavírus, como mostra pesquisa da UFRJ recentemente noticiada (FSP, 13/10/2020). Também há estudos que comprovam que onde houve políticas de testagem, rastreamento, isolamento e distanciamento social da população, as contaminações e mortes se reduzem, como citado em artigo da minha autoria publicado logo no início da pandemia(1). No entanto, apesar dessas constatações, seguimos assistindo a atitudes irresponsáveis de representantes do poder político central, as quais foram recentemente coroadas pela informação de que 6,8 milhões de testes para a Covid-19 estavam estocados e perto de chegar à data de vencimento do prazo de validade (Estado de São Paulo, 22/11/2020), quando o Brasil é um dos países com maior número de contaminações e mortes e também está entre os que menos testam(2).
Outros estudos destacam que a desigualdade está mais clara do que nunca. Muitos setores da sociedade não puderam e nem poderão fazer isolamento porque trabalham na saúde, em serviços essenciais ou porque devem trabalhar fora de casa para se sustentar. No Brasil, destacam-se os desempregados que ainda buscam trabalho e os trabalhadores informais, dentre os quais predomina a população preta e pobre do país, como mostra a PNAD COVID, detalhando a relação entre diminuição do isolamento, flexibilização das atividades e aumento do desemprego (IBGE). Outros moram em áreas onde não existe o acesso a saneamento básico e nem à água e ainda menos à proteção e aos itens de higiene. No Brasil, 74,2 milhões de pessoas não têm acesso à rede de esgoto (IBGE).
No entanto, há amplos setores da população que mesmo tendo a possibilidade de usar itens de proteção como também fazer distanciamento social, resistem, se aglomeram, e se juntam em eventos multitudinários como os que vimos durante todo esse período. Chamo a atenção aqui para as festas mais recentes ocorridas em diversas áreas da cidade: a festa em Belford Roxo, promovida pelo prefeito vencedor das recentes eleições municipais; o Luau no Arpoador; a festa na Marina da Glória e a festa em local fechado na Barra da Tijuca.
No primeiro caso citado, além da absoluta falta de responsabilidade da liderança política que convocou as pessoas, podemos supor que a participação massiva de pessoas pertencentes às classes populares esteja relacionada ao fato de que estas já estão expostas ao risco cotidianamente porque trabalham fora de casa e longe dos locais de trabalho, pegando conduções lotadas para circular na cidade. No caso daqueles que participaram dos eventos no Arpoador, Glória e Barra, as explicações seriam outras. E em todos os casos podemos pensar que existe algo que aqui chamo de “encontro do social”. Permitam-me refletir sobre o assunto, trazendo alguns fundadores clássicos e contemporâneos da filosofia política e da sociologia.
Entre 1835 e 1840, Alexis de Tocqueville escreveu na sua obra “A Democracia na América” sobre a diferença entre individualismo e egoísmo. O egoísmo, segundo o autor, é uma paixão que leva os seres humanos a preferirem sempre a si próprios, perante qualquer outra coisa. Esse instinto irrefletido, como ele o chamou, está presente em todas as épocas da humanidade.
Já nos tempos modernos, ele definia o individualismo como condição das novas sociedades democráticas. O individualismo, para o autor, era um sentimento menos apaixonado, mais frio e racional, que isolava o indivíduo e o seu pequeno grupo mais próximo. Nesse sentido, o individualismo, em sociedades móveis, onde as classes não são fixas, seria um sentimento que separava as pessoas. Essa separação dos indivíduos poderia favorecer à concentração do poder num déspota, o qual se beneficiaria do isolamento e da divisão. Só que, segundo o autor, na América, junto com essa característica, aparecia outra, que combateria o individualismo. Tratava-se da crença utilitária e moralista do “interesse bem compreendido”. Isto significava que trabalhar pelo bem comum também seria vantajoso para os indivíduos, e por esse motivo eles se esforçariam na ação coletiva.
Quase um século mais tarde, Emile Durkheim, também francês, escreveu sobre a permanência do social, considerando “o social” como um objeto, contribuindo assim para a fundação da sociologia positivista como ciência social da modernidade. Numa das suas obras mais emblemáticas, intitulada “Formas Elementares da Vida Religiosa” (1912), o social é aquele elemento que une, é o que está por trás de todas as representações religiosas, desde as mais primitivas até as mais complexas. A necessidade humana de estar em relação com os outros poderia se manifestar pelo comportamento que os indivíduos têm por serem semelhantes aos outros, ou pelos comportamentos por serem diferentes e ao mesmo tempo complementares aos outros. Seja de uma forma ou de outra, mesmo nas sociedades complexas e individualistas, “o social” sempre iria se manifestar, e a permanência das religiões era prova disso.
Análises mais recentes sobre o comportamento dos seres humanos em tempos de globalização e de uso das tecnologias para o contato social têm tratado de forma diversa essa relação entre o indivíduo e a sociedade, que até faz pouco tempo esteve mediada por instituições, sejam as primárias, como a família, o grupo de amigos, o bairro; ou secundárias, como a escola, o trabalho, o Estado.
Análises atuais como as de Zygmunt Bauman sobre a “sociedade líquida”, ou de Ulrich Beck sobre a “sociedade de risco”, apontam justamente para o declínio e reconfiguração dessas instituições, assim como para o processo de individualização. Sempre “o social” – os laços entre as pessoas – aparece à beira do abismo, diante do perigo de fragmentação e decomposição das relações sociais. No entanto, as religiões permanecem, e a procura “do social” reaparece, seja sob formas distorcidas, como no caso dos nacionalismos e fundamentalismos religiosos, ou de forma ativa, propositiva, a partir de movimentos sociais coletivos que propõem recomposição dos vínculos sociais e transformações sistêmicas. Todas essas tendências estão combinadas.
No momento atual, de capitalismo financeirizado e tecnológico, as pessoas, confrontadas com projetos neoliberais individualizantes, assim como com autoritarismos despóticos e de apelo popular, podem gerar respostas próximas a algo que Durkheim chamou de “solidariedade social”.
As questões que surgem a partir dos fatos relatados e dos autores mencionados são: 1) será que o individualismo se juntou com a paixão do egoísmo e já não leva mais em consideração o bem-estar comum, como previa Tocqueville que aconteceria na América? 2) ou, pegando o gancho de Durkheim, será que a procura pelo “social” está levando os indivíduos a um comportamento irrefletido de estar com os outros, unir-se aos outros, mesmo que o destino final possa ser fatal? 3) Ou, como apontam Bauman e Beck, será que nesse momento da sociedade altamente reflexiva, mas onde convergem riscos que colocam em questão a sobrevivência, se acentua o individualismo e a procura pelo prazer, gerando comportamentos desesperados e irreflexivos? Estes podem resultar em ações coletivas tendentes a recuperar uma unidade social anterior, como os fundamentalismos religiosos e os movimentos reacionários em defesa da família tradicional e do poder do estado despótico; ou, simplesmente levam ao desespero dos indivíduos, que saem do isolamento físico em procura dos outros, mas sem se importar com os outros nem consigo próprios, numa combinação de individualismo com egoísmo exacerbado. 4) Finalmente, na hipótese mais otimista, que combina a noção “do social” de Durkheim, com a ideia de que o “tecido social” sempre tenderá a se recompor de Karl Polanyi, podemos pensar que, mesmo que todos os elementos antes expostos estejam combinados em diferente medida, há sim uma procura do “social” como aquilo que nos une e impulsiona ao encontro dos outros. Quem sabe, a partir daí possamos aumentar a percepção da necessidade de recompor tudo aquilo que se quebrou, para poder recriar a política do cuidado e dos afetos, e assim nos salvarmos como humanidade.
(1) Ver em: Revista UFRJ (2) Comparação internacional de testagem diária/No. de casos (Brasil até 23/09/2020: https://ourworldindata.org/coronavirus-testing#the-scale-of-testing-compared-to-the-scale-of-the-outbreak
Referências: Bauman, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. / Durkheim, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Beck, Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna/ Ulrich Beck, Anthony Giddens, Scott Lash./Polanyi, Karl. A Grande Transformação. / Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América.