Ajuste fiscal e a desigualdade social no Brasil

O déficit orçamentário está a caminho de ser muito maior este ano do que no ano passado. As taxas de juros aumentaram notavelmente e só recentemente começaram a cair. Mas não há motivo para pânico. O aumento do déficit este ano não se deve a um aumento súbito nas despesas – reflete sobretudo uma queda nas receitas face aos níveis invulgarmente elevados do ano passado. Quanto às taxas de juros, é demasiado cedo para saber se a sua redução será mais rápida e a que valor mais baixo elas chegarão, se vão dar mais fôlego ao aumento no crescimento esperado do PIB para este ano e como isso vai se refletir nos seguintes.

A mídia tem dado atenção considerável ao crescimento da dívida pública. Esta tem aumentado pelo peso dos juros da dívida que cresceu desde que o Banco Central começou a aumentar as taxas de juros de 2% em março de 2021, para 13,75% em setembro de 2022 e no momento estão em 12,75% ao ano.  Nesse período, o PIB cresceu 5,0% em 2021 e 2,9% em 2022.

Como o indexador da variação da dívida pública é a taxa de juros que está no numerador da fração que mede a relação com o PIB, que é o denominador, não há como estabilizar a dívida pública como gritam diariamente os arautos do sistema financeiro. Para essa estabilização, a solução é ajuste fiscal com o corte de gastos. Porém, o corte de gastos, dada a diferença entre o crescimento do PIB e o da dívida pública, terá que ser muito grande. Se quisermos ser sérios, em vez de apenas escrever manchetes assustadoras, temos de perguntar por que será que a dívida pública é um problema?

A primeira preocupação a dissipar é a ideia de que o país tem que saldar a sua dívida de alguma forma. A nossa dívida nacional é em reais, que o governo imprime. A menos que algo verdadeiramente bizarro aconteça, seremos sempre capazes de imprimir os reais necessários para pagar os juros e o capital dos títulos do governo. O Brasil sofre danos mitigados, graças ao quase desaparecimento da dívida pública em moeda estrangeira e às reservas cambiais acumuladas nos governos Lula.

Poderia existir algum problema se a nossa economia entrasse em colapso. As pessoas poderiam perder a confiança na nossa dívida. Isso é verdade, mas um pouco maluco. Se a nossa economia entrar em colapso, deveríamos estar preocupados com o colapso da nossa economia e não com a dívida pública.

A questão mais séria é que o aumento dos pagamentos de juros é um fardo. E este é um problema real. A taxa Selic estacionada em 13,75% ao ano representou um gasto extra de aproximadamente R$ 110 bilhões para o governo pagar o juros da dívida. O valor é apenas um pouco menor do que a despesa criada pela aprovação da PEC da Transição no começo do ano, que adicionou uma verba de R$ 145 bilhões ao Orçamento de 2023 para os aumentos da Bolsa Família, do salário mínimo e outros ajustes de programas sociais.

As projeções para o total do gasto do governo com os juros da dívida pública, considerada a manutenção da Selic em 13,75% até o final deste ano, podem chegar a R$ 813 bilhões em 2023 – 7,7% do PIB. O recorde anterior foi em 2016, quando os encargos da dívida chegaram a 8,2% do PIB.

Se o Banco Central baixar a Selic para 11,0% no final de 2023, a economia  será algo em torno de R$ 70 bilhões. Porém ainda é uma taxa muito elevada quando já se sabe que a inflação não é de demanda, a economia opera com capacidade ociosa e existe uma premente necessidade de expansão dos serviços públicos. Na verdade, o custo da dívida pública vai aumentar porque o Tesouro vai recomprar a dívida antiga, que tinha taxas mais baixas, e emitir títulos novos, com taxas mais altas.

O aquecimento global está devastando o planeta. Agora que o país assumiu uma posição firme para combater a destruição da vida, colocar o corte de despesas como primordial vai na direção oposta a necessidade de fazer mais para preservação da vida no planeta. As elites políticas do país precisam compreender que o sucesso na limitação do aquecimento global é infinitamente mais relevante para a qualidade de vida dos nossos filhos e netos do que qualquer coisa que aconteça com a dívida nacional.

A despesa direta é apenas uma forma de o governo pagar as coisas. O governo apoia uma enorme quantidade de inovação e trabalho criativo, concedendo monopólios de patentes e direitos autorais. Embora estes monopólios sejam uma forma de fornecer incentivos, também acarretam um custo enorme. Se olharmos para o impacto destes monopólios concedidos pelo governo noutras indústrias, como equipamentos médicos, computadores, software, jogos de vídeo e filmes, é quase certo que acrescentam uma enorme quantidade de reais por ano ao que as famílias pagam por bens e serviços. Por alguma razão, as pessoas que gritam sobre a dívida pública nunca dizem uma palavra sobre os custos que o governo nos impõe ao emitir monopólios de patentes e direitos de autor.

E esses custos são intercambiáveis. Por exemplo, podemos gastar mais dinheiro em investigação financiada pelo governo no desenvolvimento de medicamentos sujeitos a receita médica. Em contrapartida, o governo pode existir que os remédios resultantes destas pesquisas estejam disponíveis como genéricos.

Na contabilidade padrão do déficit público, só pareceria o gasto com a investigação financiada pelo governo, não a redução dos preços dos medicamentos. O nosso atual sistema de patentes faz coisas como encorajar as empresas farmacêuticas a promover os opiáceos e a mentir sobre a eficácia dos seus medicamentos. Mas, sabemos que os falcões do déficit e muitos dos meios de comunicação social que promovem as suas esmolas, não se preocupam com a eficiência, querem apenas uma dívida mais baixa.

Haveria uma outra alternativa. Poderíamos conceder monopólios de patentes ou direitos autorais como forma de financiar vários serviços governamentais. Para financiar a previdência social (INSS e benefícios sociais), um monopólio de patente e cobrança de taxas de licenciamento sobre o uso dessas patentes. Mas isso bateria de frente com o princípio básico do (neo)liberalismo que é a propriedade individual e o empreendedorismo com incentivo para a inovação e o desenvolvimento.

A história séria de como o aumento da dívida é mau é que pode levar a pagamentos de juros mais elevados. O “pode” aqui é importante. A razão dívida/PIB aumentou consideravelmente durante os últimos trinta anos porque a relação pagamento de juros e PIB aumentou.  Aconteceu porque tivemos taxas de juros muito altas nesses anos. O BACEN manteve deliberadamente as taxas muito elevadas para atrair dólares, valorizar o real e na cartilha liberal promover importações mais baratas para incentivar a competividade e a produtividade em especial da indústria e via privatização da infraestrutura dado que estas ficavam mais baratas em dólar. Esse processo ocasionou a retração do crescimento industrial, efeito oposto ao preconizado pela cartilha liberal.

O elevado pagamento de juros sobre a dívida pública produz uma maior desigualdade de renda. Em conjunto com a estrutura regressiva do nosso sistema tributário, produz uma distribuição de rendimentos distorcida no sentido ascendente, em benefício das rendas mais altas.

O impacto das novas tecnologias, sobretudo da Inteligência Artificial (IA), ainda é pouco claro. Se essas tecnologias tiverem um impacto substancial no crescimento da produtividade, então poderemos assistir novamente ao aumento do desemprego. Além disso, à medida que mudamos para tecnologias limpas, haverá menos procura de combustíveis fósseis e de muitos dos serviços associados. É claro que estas tecnologias também podem estar associadas a um boom de investimento que aumentará a procura de mão de obra.

O problema de um déficit governamental não é o financiamento. Podemos sempre imprimir o dinheiro. O problema, como dizem os liberais, é que pode ser inflacionário, uma vez que pode levar à demasiada procura na economia. Mas se esta estiver operando com capacidade ociosa isso não acontece. Só em pleno emprego, do qual estamos longe.

Os pagamentos de juros sobre a dívida não criam diretamente procura na economia. Eles criam demanda apenas quando as pessoas gastam os pagamentos de juros. Na medida em que os pagamentos sejam feitos a pessoas com rendimentos elevados e com baixa propensão para consumir, terão um impacto relativamente limitado nas despesas e na procura. Mas nem todos os pagamentos de juros vão para os ricos, e mesmo os ricos gastarão uma fração dos seus juros.

Assim, o problema do pagamento de juros mais elevados sobre a dívida é o aumento da procura de consumo, o que pode criar pressões inflacionárias na economia. Isso nos leva ao problema de um mercado de ações em ascensão.

Embora algumas pessoas pensem no mercado de ações como uma forma de angariar dinheiro para investimento, a maioria das empresas raramente levanta dinheiro através deste canal. Na verdade, as empresas normalmente abrem o capital como forma de os investidores iniciais sacarem os seus ganhos. O principal impacto econômico de um mercado acionário em ascensão não se verifica no investimento, mas sim no consumo.

Supondo que as pessoas gastem 3 ou 4 por cento desta nova riqueza, veríamos um aumento no consumo anual entre 180 bilhões e 240 bilhões de dólares. Se estamos preocupados com o fato do excesso de procura criar pressões inflacionistas na economia, então deveríamos estar preocupados com o impacto deste aumento na riqueza em ações.

Nesse sentido, um mercado de ações em alta é uma má notícia para a economia, da mesma forma que o aumento dos pagamentos de juros sobre a dívida pública. Se assumirmos que 70% dos pagamentos de juros são gastos, então um aumento de 20% no mercado bolsista criará aproximadamente a mesma pressão inflacionista que os pagamentos de juros adicionais sobre a dívida pública.

Assim, se estamos preocupados com a possibilidade dos juros da dívida conduzirem à inflação, também deveríamos comunicar as más notícias sobre a inflação sempre que presenciamos uma grande subida nos preços das ações. Em suma, os juros da dívida machucam a economia da mesma forma que a alta dos preços das ações, mas recebem muito mais atenção do que itens que são problemas muito maiores em qualquer perspectiva realista.

O retorno de políticas de austeridade ou o aumento da popularidade de novos líderes ao redor do mundo que classificam o Estado como fonte de todos os problemas é o resultado da vitória da ideologia neoliberal desde os anos oitenta do século XX. Precisamos de uma nova ideologia que oriente uma nova política de Estado. É preciso que as instituições públicas assumam um novo papel no século XXI, fornecendo uma direção e exigindo que todos os setores da economia inovem.

Assim, a proposta do governo de aplicação dos pisos constitucionais de saúde e educação só a partir de 2024, e não no exercício de 2023, vai na direção oposta da nova política pública para o século XXI.  Da mesma forma, vão também na direção oposta da nova política não vetar a lei do marco temporal e não ter uma política de segurança nacional que coordene, integre e dê uma direção para as políticas de segurança estaduais. A política de segurança nacional deve começar com a retirada das Forças Armadas na atuação da garantia da lei e da ordem interna e definir, para elas, uma estratégia de defesa para o enfrentamento das ameaças externas. O cidadão e a cidadã do Brasil não são os inimigos da segurança nacional.

O arcabouço fiscal e o ajuste proposto servem para quem? Para quem não precisa das políticas públicas de redistribuição de renda que necessitam de financiamento público para aumentar o gasto público. Déficit zero vai aumentar a desigualdade de renda dado o tamanho dos juros e consequente redução do gasto público.

A quem interessa o ajuste fiscal? Aos beneficiados de sempre que recebem a maior parte (70%) dos juros da dívida e os dividendos da propriedade dos seus ativos. Não à maioria da população brasileira. Essa é a culpada de sempre. Será que o capitalismo atual, não o capital, vai se transformar um feudalismo financeirizado?

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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