A Constituição brasileira trata a ordem social tendo por base o primado do trabalho, enfatizando os objetivos de bem-estar e justiça social. O artigo 194 da nossa Constituição trata da Seguridade Social, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a garantir os direitos relativos à Saúde, à Previdência e à Assistência Social. Portanto, sem tergiversações, fica claro que a saúde, a previdência e a assistência social estão contidas no arcabouço da Seguridade Social e são asseguradas constitucionalmente.

Fala-se muito de “déficits incontroláveis da previdência”, de “bomba relógio”, dentre outras visões alarmistas neoliberais.

Comete-se o erro crasso de considerar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) como um gasto previdenciário, o que não é correto. O BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos dois anos), que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC não é aposentadoria. Para ter direito a ele, não é preciso ter contribuído para o INSS. Diferentemente dos benefícios previdenciários, o BPC não tem 13 pagamentos anuais e não deixa pensão por morte. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo.

Dados do Relatório Resumido da Execução Orçamentária da União (RREO) mostram que o déficit do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) de 2024 caiu 3,8% em relação ao verificado em 2023 (R$ 303,7 bilhões contra R$ 315,7 bilhões). O mesmo não aconteceu com o déficit do Regime Próprio da Previdência Social (RPPS) que abrange os funcionários públicos estatutários (R$ 55,8 bilhões) e das aposentadorias dos militares (R$ 50,9 bilhões), que apresentaram aumento em relação a 2023.

O governo federal costuma apresentar o déficit da Previdência com base na diferença entre as receitas arrecadadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e os gastos com benefícios previdenciários. Esse cálculo geralmente mostra um saldo negativo crescente ao longo dos anos, o que é usado para justificar a necessidade de reforma do sistema. Esse déficit é elevado principalmente pelo envelhecimento populacional e aumento no número de beneficiários em relação aos contribuintes ativos.

O déficit é uma realidade ou meramente uma construção contábil?

Alguns economistas e estudiosos contestam a ideia de um “rombo” na Previdência. Eles argumentam que o cálculo do governo desconsidera outras fontes de financiamento da seguridade social, como as contribuições do Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e do PIS/Pasep. Segundo essa visão, quando se considera a Seguridade Social como um todo (incluindo Previdência, Saúde e Assistência Social), os recursos arrecadados seriam suficientes ou até superavitários, no entanto, eles são destinados para outras áreas do orçamento, principalmente por meio da DRU (Desvinculação de Receitas da União), que permite ao governo utilizar até 30% desses recursos para outras finalidades.

Mas, independentemente da forma de cálculo, existem fatores estruturais que pressionam o sistema previdenciário, entre eles os seguintes:

  • Envelhecimento populacional: menos jovens entrando no mercado de trabalho e mais idosos recebendo benefícios.
  • Desemprego e informalidade: reduzem a arrecadação previdenciária.
  • Regras de aposentadoria generosas no passado: algumas aposentadorias precoces e pensões vitalícias contribuíram para o aumento dos gastos.
  • Fraudes e má gestão: casos de concessões indevidas e falta de fiscalização também impactam as contas.

Para conter o crescimento do déficit, o Brasil passou por diversas reformas, sendo a mais recente a reforma da previdência de 2019, que alterou as regras de idade mínima de aposentadoria, tempo de contribuição e cálculo dos benefícios. A reforma buscou equilibrar as contas ao longo do tempo, mas não foi suficiente.

A maioria dos países do mundo enfrenta desafios em seus sistemas previdenciários devido ao envelhecimento populacional, aumento da expectativa de vida e mudanças no mercado de trabalho. No entanto, a forma como cada país lida com o financiamento da previdência varia bastante.

Os países mais desenvolvidos são os que mais têm problemas com o déficit previdenciário, pois possuem populações mais envelhecidas e taxas de natalidade mais baixas.

O Japão tem uma das populações mais velhas do mundo e um sistema previdenciário que depende da contribuição dos trabalhadores ativos. Como há cada vez menos trabalhadores contribuindo para um número crescente de aposentados, o governo tem aumentado impostos e incentivado a permanência no mercado de trabalho.

A França enfrentou grandes protestos num passado recente, contra a reforma da previdência que aumentou a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos. O sistema francês é de repartição, o que significa que os trabalhadores ativos pagam os benefícios dos aposentados. Com menos trabalhadores e mais aposentados, o déficit cresce.

A Alemanha depende muito de sua força de trabalho jovem e de imigrantes para sustentar seu sistema previdenciário e já aumentou a idade de aposentadoria para 67 anos e pode subir mais no futuro.

O sistema de previdência social (Social Security) dos Estados Unidos enfrenta desafios semelhantes. Estima-se que o fundo do Social Security pode ficar sem recursos para pagar benefícios integrais a partir de 2034, caso não sejam feitas mudanças na forma de financiamento.

Já os países em desenvolvimento enfrentam desafios variáveis, dependendo da taxa de envelhecimento da população e da formalização do mercado de trabalho. A China, por exemplo, também tem o problema de envelhecimento, entre outras razões, como consequência da política do filho único, implementada por décadas. O governo está buscando incentivar a natalidade e aumentar a idade de aposentadoria.

Até agora, a Índia não enfrenta um grande problema previdenciário, pois tem uma população jovem, mas é importante lembrar que grande parte da força de trabalho do país não tem cobertura previdenciária, já que está na informalidade.

O fato é que a crise previdenciária é um problema global, cuja gravidade varia. Alguns países desenvolvidos já estão reformando seus sistemas, mas os emergentes ainda estão reformando de uma forma relativamente lenta. Em termos gerais, as políticas de ajuste têm seguido as seguintes orientações gerais:

  • Aumento da idade de aposentadoria: muitos países estão elevando a idade mínima para equilibrar o sistema (exemplo: França e Alemanha).
  • Incentivos para que as pessoas trabalhem mais tempo: alguns governos oferecem benefícios fiscais para quem adia a aposentadoria.
  • Privatização parcial ou total da previdência: alguns países, como Chile e Suécia, adotaram sistemas que combinam previdência pública e fundos privados.
  • Maior tributação para financiar o sistema: algumas nações aumentaram impostos para cobrir os déficits previdenciários.
  • Uso de imigração para reforçar a base de contribuintes: Alemanha e Canadá, por exemplo, incentivam a entrada de trabalhadores estrangeiros para compensar o envelhecimento da população.

No Brasil, as propostas de ajuste na previdência social variam, dependendo da avaliação sobre as causas do déficit. Se considerado apenas o INSS, há um déficit crescente. Se analisada toda a Seguridade Social, há indícios de que o problema poderia ser menor ou até inexistente, dependendo da gestão dos recursos. De qualquer forma, o envelhecimento populacional exige mudanças no sistema para garantir sua sustentabilidade no longo prazo.

Para combater o déficit da Previdência de forma sustentável, o Brasil precisa adotar uma abordagem equilibrada, combinando ajustes nas regras de aposentadoria, melhorias na arrecadação e estímulos ao crescimento econômico. Algumas estratégias eficazes incluem:

  • Aumento na formalização do mercado de trabalho – se mais pessoas forem formalizadas, a arrecadação aumentará e ajudará a equilibrar as contas. Para tanto, há que se explorar caminhos como a redução da burocracia e dos encargos trabalhistas para incentivar a formalização; criação de incentivos para MEIs (Microempreendedores Individuais) e pequenas empresas registrarem funcionários.
  • Melhoria do sistema de fiscalização contra fraudes e o trabalho informal – para reduzir os pagamentos indevidos e fraudes, ampliar o uso de tecnologia, como biometria e inteligência artificial; fazer revisão periódica dos benefícios para garantir que estejam sendo pagos corretamente; e punição das fraudes com maior rigor.

Também poderiam ser implementadas novas fontes de financiamento da seguridade social – redução da Desvinculação de Receitas da União DRU e imposto progressivo sobre grandes fortunas ou sobre lucros extraordinários. Mas este caminho depende de uma ampla maioria legislativa. O mesmo pode ser dito em relação ao aumento gradual da idade mínima de aposentadoria, conforme cresce a expectativa de vida; e incentivo ao trabalho após a aposentadoria.

Como pôde ser visto, não existe uma solução única para o déficit da Previdência, mas um conjunto de medidas que pode garantir um sistema mais sustentável no longo prazo. O ideal é formalizar mais trabalhadores (103,3 milhões com carteira assinada em 2024), combater fraudes, estimular o crescimento econômico e diversificar as fontes de financiamento, ao invés de se propugnar medidas neoliberais de corte de benefícios daqueles que mais precisam ou, simplesmente, aumentar a idade da aposentadoria, como propõem os adeptos de soluções neoliberais fáceis, sempre no lombo dos menos privilegiados.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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