As compras públicas sempre foram um dos instrumentos mais estratégicos do Estado brasileiro para a promoção do desenvolvimento nacional. Previstas constitucionalmente como meio para assegurar a isonomia, a moralidade e a eficiência administrativa, tornaram-se, com a Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), ainda mais vinculadas à ideia de planejamento, vantajosidade ampliada e fomento à inovação. No entanto, quando observamos o padrão de contratações de tecnologia da informação e comunicação (TIC) no Brasil, especialmente no período recente, deparamo-nos com uma contradição preocupante entre os objetivos legais e as práticas efetivas da Administração Pública.
O estudo empírico coordenado por Cugler et al. (2025) revela que, entre 2014 e 2025, o setor público brasileiro destinou mais de R$ 23 bilhões em contratações com fornecedores estrangeiros de soluções digitais, como Microsoft, Oracle, Google e Red Hat, sendo R$ 10,35 bilhões apenas no último ano analisado (CUGLER et al., 2025, p. 8- 10). Parte significativa dessas contratações envolve modelos de serviços como SaaS (software como serviço), PaaS (plataforma como serviço), licenciamento por assinatura e hospedagens em nuvens privadas sob jurisdições estrangeiras. Trata-se, como alertam os autores, de uma espécie de “aluguel digital”, em que o Estado paga de forma recorrente por soluções que não domina, que não possui, e que tampouco pode auditar em profundidade (CUGLER et al., 2025, p. 5).
Esse modelo impõe ao Brasil uma forma contemporânea de dependência tecnológica, que compromete diretamente sua soberania digital. Entendida como a capacidade do Estado de exercer controle sobre seus sistemas, seus dados e suas decisões informacionais, a soberania digital tornou-se uma dimensão central da soberania nacional no século XXI (VAROUFAKIS, 2021; CUGLER et al., 2025, p. 18). A concentração de serviços públicos em plataformas estrangeiras, a ausência de interoperabilidade e a dependência de licenças proprietárias criam um ambiente institucional em que a Administração Pública atua como mera usuária de estruturas geridas por interesses privados externos.
A esse cenário soma-se um evidente descompasso jurídico. A própria Lei nº 14.133/2021, em seu art. 11, §1º, inciso I, determina que a licitação deve promover o desenvolvimento nacional sustentável, princípio também consagrado nos arts. 3º, II, e 219, §1º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Essa exigência não é meramente retórica: ela impõe que o conceito de vantajosidade seja interpretado de forma ampla, considerando não apenas o preço, mas também os impactos estratégicos da contratação. A vantajosidade, nesse contexto, deve incluir critérios como soberania, domínio do código-fonte, possibilidade de auditoria, licenciamento aberto, interoperabilidade e capacidade de transição tecnológica ao término da contratação (JUSTEN FILHO, 2021, p. 355-358).
Ao negligenciar esses fatores, o Estado brasileiro incorre não apenas em ineficiência, mas em possível violação ao interesse público. A jurisprudência do Tribunal de Contas da União já consolidou o entendimento de que a economicidade deve considerar os custos indiretos, os riscos contratuais e os efeitos sobre a autonomia da Administração (TCU, Acórdão 2622/2013 – Plenário). A perpetuação de contratos com fornecedores estrangeiros que operam em ambientes opacos e não auditáveis fere, portanto, não apenas o princípio da eficiência, mas também o da legalidade e da supremacia do interesse público.
Além disso, é necessário reconhecer que o país dispõe de alternativas reais para reduzir essa dependência. Instituições como o C3SL da UFPR, a RNP, o SERPRO e a DATAPREV produzem, há anos, soluções tecnológicas robustas, auditáveis e adaptadas às necessidades da Administração Pública. Contudo, como demonstra o estudo citado, essas soluções seguem sendo sistematicamente preteridas, mesmo quando mais baratas, mais transparentes e juridicamente mais seguras (CUGLER et al., 2025, p. 20-21). Trata-se de uma inversão de prioridades que não encontra amparo nem na nova legislação, nem na lógica do desenvolvimento tecnológico soberano.
Nesse ponto, cabe uma crítica ao atual modelo de governança tecnológica da Administração Pública, que, na prática, desconsidera o potencial do Estado brasileiro em produzir e operar suas próprias soluções. Ainda que a Lei 14.133/2021 permita a contratação direta de instituições científicas e tecnológicas públicas, como previsto em seu art. 75, a aplicação concreta dessa faculdade ainda é tímida. A rigor, as universidades e institutos federais deveriam ser protagonistas do processo de transformação digital do Estado, assumindo funções de desenvolvimento, auditoria, manutenção e capacitação de servidores em larga escala.
Paralelamente, é urgente a criação de uma nuvem pública federada, descentralizada, gerida por órgãos públicos, com base técnica em infraestrutura já disponível na Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP). Essa nuvem, operada sob a jurisdição nacional e com padrões abertos de interoperabilidade, permitiria ao Estado garantir a guarda segura de dados sensíveis — como prontuários médicos, cadastros sociais, dados de inteligência e sistemas judiciais — sem expô-los a regimes jurídicos estrangeiros, como o Cloud Act norte-americano (CUGLER et al., 2025, p. 18-19). A soberania digital, nesse contexto, não é uma questão teórica, mas sim uma exigência constitucional vinculada à segurança nacional, à proteção de dados e ao exercício da função administrativa com independência.
Também é necessário que os contratos administrativos de TIC passem a incluir cláusulas obrigatórias de transição tecnológica. A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 6º, inciso XLII, prevê expressamente que o “ciclo de vida do objeto” inclui a transição contratual. Isso impõe aos fornecedores a obrigação de deixar documentada a estrutura lógica, de repassar conhecimento técnico às equipes públicas e de garantir que a solução possa ser operada ou substituída sem prejuízo à continuidade do serviço. Infelizmente, o que ainda se vê na prática são contratos que criam dependência permanente, dificultam a migração de fornecedor e violam a transparência e o controle social.
Em vista de todos esses elementos, é indispensável a formulação e execução de um Plano Nacional de Soberania Digital, com metas vinculantes, orçamento dedicado e governança intersetorial. Essa política deve ser liderada por um órgão com capacidade articuladora e centralidade estratégica — como a Casa Civil, o GSI ou o Ministério da Gestão — e contar com a participação de universidades, autarquias federais, especialistas em governança digital e representantes da sociedade civil. Não se trata de criar mais uma estrutura burocrática, mas sim de consolidar uma agenda de Estado voltada à autonomia digital, à proteção dos direitos fundamentais e à valorização das capacidades públicas instaladas.
Diante desse panorama, não é exagero afirmar que o modelo atual de contratação tecnológica aprofunda a subordinação do Brasil a corporações globais e compromete diretamente a sua soberania. Essa situação não apenas fragiliza a posição do Estado no cenário internacional, mas também bloqueia oportunidades internas de inovação, de geração de emprego qualificado e de construção de um ecossistema público digital autônomo. O Estado brasileiro não pode continuar terceirizando sua inteligência institucional. É preciso romper com a lógica do aluguel tecnológico e construir, com base no ordenamento já existente, uma política robusta, eficiente e soberana para o século XXI.
Referências
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
CUGLER, Ergon et al. Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
TCU – Tribunal de Contas da União. Acórdão 2622/2013 – Plenário.
VAROUFAKIS, Technofeudalism: What Killed Capitalism.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Clique para ler: Estados das Big Techs ou Big Techs dos estados, de Luiz Martins de Melo.