- Esse artigo foi escrito no dia de Iemanjá/Oxumaré, dia 02 de fevereiro, um antes da Anvisa mudar parcialmente sua postura em relação às autorizações de uso emergencial das vacinas, especialmente da Sputnik V. Não podia ser diferente, como explico.
Recentemente foram anunciados os resultados de fase III da vacina russa, a Sputnik V, nome do produto do Instituto Gamaleya. Destaque para a eficácia geral de 91,6% e de 91,8% para os maiores de 60 anos. No entanto, a divulgação de uma instituição estatal russa não segue o que a mídia ocidental no paraíso das multinacionais dos medicamentos exige que façam – um carnaval midiático! Não houve uma coletiva de imprensa ou releases internacionais difundidos pela Reuters ou Associated Press, sempre encomendados por suas íntimas relações com as empresas (cerca de 30% do faturamento da big pharma é utilizado em propaganda).
Simplesmente os resultados apareceram na Lancet online (1), já comentados por um dos pareceristas (2). E os resultados de eficácia são muito bons. O estudo é bem planejado e bem descrito. O representante da vacina russa no Brasil, a União Química (creio que associada ao Tecpar), fez o pedido à Anvisa para realizar os testes de Fase III no Brasil – o que foi negado por falta de papéis.
Recentemente, no Brasil 247, comentei a sessão da diretoria da Anvisa do dia 17 de janeiro (3). Naquele show, dominou a incongruente razão do bolsonarismo, tentando atrasar o uso da vacina “chinesa”, com supostos argumentos “técnicos”. Hoje quero crer que tem a ver com o modo como a agência se comportava em certas ocasiões, antes mesmo desse governo. A verdade é que já havia um embate entre questões de política sanitária e posições tecnocráticas, permeado aos indefectíveis interesses patrocinados por empresas e congressistas.
A Anvisa não pode ser um órgão burocrático, menos ainda em situações emergenciais. Ela deve procurar ajudar a orientar o proponente, ao invés de concentrar-se em aspectos formais como prazo, papéis ou visitas para dizer sim ou não à adequação das instalações. Ainda que tenha bons técnicos, para os propósitos da inovação tecnológica ela só se tornou satisfatória graças a um dos maiores técnicos do Brasil em regulação farmacêutica, o competente professor da UFSC e ex-assessor da diretoria da agência, Norberto Rech.
Nessa linha, foi absurda a exigência da realização de testes típicos da Fase III no país. É improcedente que precise ter um estudo no Brasil para que a vacina possa ser importada ou produzida, como tem sido dito por aí. Qualquer dispositivo legal que porventura exista deve ser revogado ad nutum – nesta situação emergencial. Visitas a instalações, controle de qualidade ao chegar? – Sim, de acordo. Mas é inaceitável que um imunizante eficaz deixe de ser utilizado, ou se crie embaraço à sua aplicação por seus estudos clínicos não terem sido realizados no Brasil. Além disso, seria anti-ético arrolar voluntários que tomassem placebo em meio a uma epidemia.
A reação pública da Anvisa hoje ao anúncio do estudo publicado na Lancet só piora sua imagem de querer criar dificuldades. Diz a agência que esse estudo não se aplicaria à mesma vacina que foi submetida a ela. Mas a verdade não é assim. Essa vacina pode ser produzida tanto na forma líquida como liofilizada. Com imunogenicidade muito semelhante, a liofilização é uma grande possibilidade adicional. O teste clínico de fase III publicado hoje foi com a vacina líquida. Certamente veremos sem alarde os resultados comparativos entre ambas em breve, mas não precisamos esperar. Ah, mas e os papéis? Sim, a União Química deve estar juntando tudo.
Supondo que os dados da Sputnik V ainda não tivessem sido publicados, ainda assim haveria de ser considerado, para a liberação emergencial, o estudo comparativo apenas com outra vacina como, por exemplo, a Coronavac, de tecnologia mais sedimentada para mostrar que se encontra dentro do mesmo patamar de eficácia e de reatogenicidade. Enfim, este é um delineamento que pode ser usado para eventual discussão e aplicação futura para similares biológicos, como sinalizei em live recente como debatedor do G. Vecina, organizador da Anvisa, e publiquei na Hora do Povo em 14 de agosto, um artigo sobre a vacina russa, ressaltando a urgência disso para não ficarmos à mercê dos preços praticados pela big pharma. A seguir, reproduzo a ideia que está no artigo:
- “… Creio que esse episódio e o questionamento sobre a realização da fase 3 com grupo placebo pede uma reflexão. Trata-se de avaliar melhor dois aspectos éticos dos estudos na situação pandêmica. De um lado, riscos de uso largo de produto que já se sabe imunogênico em quem não está doente, embora esteja à risco mediano de adoecer. De outro lado, a questão de não usar (ou protelar) um produto disponível em grupos de alto risco de adoecer. (…)
- De outro lado, a melhor estratégia para um país que tem ainda uma incidência alta da doença seria (realizar) estudos comparativos entre as vacinas disponíveis concomitantes. Mas aí, a cooperação proclamada para fazê-la um bem global seria bem mais profunda e racional.”
Às vésperas do Carnaval suspenso na Babilônia, a vacina russa pede passagem! Bip.bip.bip
Referências: