O golpe de 2016 tem se reproduzido por sucessivas vitórias político-eleitorais no campo ideológico de direita. A safra dos prefeitos eleitos em 2016 identificados com o espectro conservador nos costumes e liberal na economia terminou sendo, em grande medida, reconfirmada pelo resultado do pleito municipal de 2020.

No caso da eleição presidencial de 2018, o êxito alcançado pela extrema direita encontrou uma trajetória descontínua, marcada por diferentes faces do bolsonarismo. Em dois anos de mandato, o governo mudou suas posições relativas várias vezes, parecendo mostrar-se competitivo, consistente e preparado para a corrida presidencial de 2022.

Em 2019, durante o primeiro ano de governo, Bolsonaro procurou seguir à risca o receituário neoliberal e lavajatista. Formou um ministério enxuto e se mostrou como um político liberto da contaminação fisiológica e mercantil do partidarismo tradicional. Além disso, procurou faturar como seu o trunfo da reforma previdenciária, pedra angular dos interesses convergentes do rentismo.

Mesmo assim, seus resultados foram pífios. A economia não teve vitalidade e o desempenho daquele ano foi pior que o colhido por Temer em 2018. Politicamente, houve uma queda na popularidade e avanço da oposição na intenção de abrir um processo de impedimento.

Diante disso, e compatível com o alastramento da catastrófica pandemia da Covid-19, Bolsonaro apresentou a sua segunda face. Embora mantendo a retórica neoliberal, terminou, na prática, erigindo políticas de natureza anticíclicas e de grande impacto político, capaz de consagrar, inclusive, a própria vitória dos partidos do centrão nas eleições municipais de 2020.

Para seguir nesta direção, foi fundamental o afastamento do lavajatismo. Por isso demitiu Moro e liquidou a Operação Lava Jato, ao mesmo tempo em que procurou uma aproximação com a classe trabalhadora do setor de serviços. Por outro lado, aliou-se aos partidos do centrão, o que permitiu a Bolsonaro distanciar-se do núcleo de partidos propulsores do neoliberalismo (PMDB, PSDB e DEM), enfrentar parte da mídia comercial (O Globo, Estadão, Folha) e enquadrar alguns governadores de direita que buscavam romper com a aliança pré-eleitoral de 2018 (Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente).

O assalto ao fundo público efetuado em 2020 produziu o maior déficit e endividamento público da República, o qual, embora importante para evitar a recessão, foi muito grande e gerou uma reação da direita neoliberal que comandava as duas casas no legislativo federal, sobretudo a Câmara dos Deputados. Uma demonstração disso foi a não aprovação do orçamento federal em 2020, mas a disputa foi vencida por Bolsonaro, que teve uma dupla vitória nas eleições para a direção da mesa no Senado e da Câmara dos Deputados logo no início de 2021.

Contudo, esses fatores não escondem o derretimento da popularidade e a insatisfação social frente à decadência acelerada do país e ao empobrecimento alarmante da população, sem falar da quebradeira dos pequenos e médios negócios em 2020 e da saída de multinacionais em 2021.

Em meio a esse cenário no mínimo turbulento emerge a terceira face de Bolsonaro. Por ora, ele demonstra capacidade para desmontar o surgimento de uma candidatura vitaminada, uma terceira via, e também para acrescentar à sua base eleitoral parte importante dos partidos de direita, para além dos tradicionalmente vinculados ao centrão.

O ano de 2021 talvez seja o mais difícil do mandato de Bolsonaro. Uma pedreira a contornar, com a tragédia socioeconômica, a ausência de perspectiva de recuperação consistente do sistema produtivo, o aprofundamento da crise sanitária, a desordem nas finanças públicas e o alarmante isolamento internacional. O receituário neoliberal, retoricamente, segue sendo apresentado e deve, na prática, inviabilizar o terceiro ano do governo Bolsonaro, se for perseguido com uma elevação na taxa de juros e a continuidade do programa de austeridade fiscal, conforme exigem a banca rentista, os porta-vozes do dinheiro e da mídia comercial.

Para o espectro ideológico da esquerda, contudo, o cenário se mostra também complexo. Com menos prefeituras, a possibilidade de ampliar a base parlamentar em 2022 torna-se mais difícil.

A carência de direção política frente à ascensão do fascismo desde Temer parece ser cada vez mais evidente. Da mesma forma, a prática política conduzida como se fosse uma espécie de glamourização a tratar “celebridades pelo apelo ao clique das redes sociais” difunde falas sem conteúdo programático e esperança transformadora de futuro melhor.

Tudo isso se acentua pelo esforço infrutífero dos esforços pela captura por curtidas nas redes sociais. A verdade é que as direções de oposição não conseguem estabelecer um diálogo sobre o duro cotidiano da população, sobretudo da nova classe trabalhadora dos segmentos de serviços. O discurso parece continuar sem eco, fazendo as propostas rodarem em falso.

Sob o embalo da ótica liberal das redes sociais, a política segue sendo negada enquanto forma de organização e transformação coletiva. O vazio deixado em termos de respostas concretas à avassaladora destruição no horizonte de expectativas futuras parece dar lugar ao novo fanatismo religioso e ao banditismo centralmente organizado a se alastrar como pólvora no seio dos sem esperanças e desacreditados de tudo.