O sistema chinês de pagamentos transfronteiriços já excedeu a cifra de 1,2 trilhão de dólares americanos cobrindo uma rede que alcança 200 países. Trata-se de uma revolução digital silenciosa que não tem volta.

A história pode nos ensinar: impérios permanecem hegemônicos enquanto produzem mais do que consomem. Romanos, persas, otomanos ou britânicos reinaram enquanto mantiveram superávits comerciais substantivos em relação ao resto do mundo. Os Estados Unidos, no entanto, representam uma anomalia histórica: mantêm um imenso poder global mesmo com um déficit comercial crônico que sobrevive há mais de meio século. (Philip Yang )

O sistema monetário internacional baseava-se num padrão-ouro ancorado na supremacia naval do Império Britânico. Após o fim da II Guerra Mundial os EUA brotaram como a potência econômica e militar dominante no planeta. Com o Acordo de Bretton Woods, em julho 1944, o dólar foi imposto ao mundo, em substituição à libra esterlina, respaldado em parte significativa do estoque de ouro existente no mundo, mantido no Fort Knox (padrão ouro). Contudo, o crescente desequilíbrio fiscal dos EUA gerou desconfiança do resto do mundo na capacidade dos EUA honrarem a paridade dólar-ouro, conceito que sustentava, de forma instável, o dólar como reserva internacional no mundo. Daí, a razão da quebra do padrão ouro em 1971 e a negociação dos EUA com a Arábia Saudita e demais produtores de petróleo da OPEP para que a venda de petróleo fosse feita exclusivamente em dólares em troca de cooperação econômica e proteção militar (petrodólares x dependência geopolítica).

Na mesma época, aproveitaram para excluir a União Soviética do sistema financeiro internacional numa clara demonstração do “exorbitante privilégio do dólar”, como destacou Valéry Giscard d’Estaing ex-presidente da França que era, na época, ministro das Finanças da França. De fato, enquanto o mundo inteiro precisava exportar para obter dólares e poder importar, os EUA podiam simplesmente emitir moeda e comprar mercadorias e ativos no resto do mundo.

Os crescentes déficits comerciais dos EUA com diversos países, dentre os quais Alemanha e Japão, foi momentaneamente resolvido com o Acordo de Plaza no qual foi engendrada “consensualmente” a desvalorização cambial do dólar, como forma de buscar equilíbrio na balança comercial.

A crise financeira sistêmica de 2008 foi resolvida através da maciça compra pelo FED de títulos públicos e ativos problemáticos dos Bancos (quantitative easing), novo contorcionismo monetário para resolver mais uma crise estrutural e sistêmica dos EUA.

Nos últimos 80 anos, os EUA propugnaram e lideraram o livre comércio e os mercados de capitais e as finanças internacionais, ancorados no dólar como moeda de reserva mundial, o que contribuiu para a globalização do comércio e das cadeias produtivas da maioria dos países. Contudo, tais práticas estão sendo abruptamente abandonadas, com mudanças radicais na política comercial norte-americana com o retorno de feroz e irracional protecionismo, ensejando, quando necessário, a política do big stick, o que ameaça a própria estabilidade e credibilidade no dólar como moeda de referência mundial.

E qual a razão disso? Os EUA, há no mínimo cinco décadas, financiam seu próprio consumo e o seu significativo poderio militar gastando muito mais do que produzem, o que é propiciado pelo “exorbitante privilégio do dólar”. Os EUA se deram conta da vulnerabilidade estrutural que essa situação acarreta. Não serão capazes de continuar mascarando o crescente declínio e fragilidade de sua economia, principalmente em relação à ascensão da China que mudou radicalmente o mapa do comércio e da tecnologia global. Até quando poderá durar o “exorbitante privilégio do dólar”?

A dívida pública dos EUA é da ordem de US$ 36,2 trilhões e os juros pagos anualmente para rolá-la elevam-se a quase US$ 1 trilhão. O déficit comercial atingiu, em 2024, a marca de US$ 918,4 bilhões. Daí o advento do slogan MAGA (Make America Great Again) e o convite a Scott Bessent, pupilo de George Soros e mestre em especulação global, para dirigir a Secretaria do Tesouro. Daí usar a política do big stick, ameaças, sanções e imposições contra a maioria dos países do mundo, que terão de se adequar às novas políticas comerciais baseadas na força do poder de compra dos EUA (elevação de tarifas), indução forçada de investimentos em favor dos EUA (revitalização industrial), redução da carga tributária de seus investidores (tax ruling), desvalorização do dólar (favorecimento das exportações dos EUA) e guerra à desdolarização em curso no mundo (“a verdadeira guerra”, segundo Trump). Tudo isso para garantir a supremacia do dólar e financiar a dívida americana, a despeito dos severos transtornos nas cadeias produtivas e estabilidade global.

Para tanto, continuará congelando ativos financeiros e aplicando sanções econômicas aos países não alinhados com as orientações geopolíticas dos EUA e de seus lacaios da União Europeia. Um eficaz instrumento para isso é o congelamento de reservas e bloqueio da utilização do Sistema de pagamentos SWIFT por parte dos bancos de tais países desalinhados. Importantes bancos russos foram excluídos do sistema por força da invasão da Ucrânia. Tal sanção contra a Rússia não foi inteiramente eficaz pela relevância e forte demanda por seus produtos, o que permitiu que ela continuasse o comércio com suas contrapartes em transações bilaterais, de forma direta, de banco a banco. Também avançou com o desenvolvimento do seu próprio sistema de transferências internacionais que é o SPFS (Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras do Banco da Rússia).

O mesmo aconteceu com o bloqueio de reservas e proibição de bancos do Irã de utilizarem o sistema SWIFT, o que não foi tão eficaz pois naquele momento, a China já havia construído um circuito fechado de pagamentos em Renminbi (o nome oficial da moeda cuja unidade é o yuan chinês) no Sudeste Asiático, com diminuição dos impactos das sanções sobre o Irã.

O SWIFT, criado na Bélgica, em 1973, é a Sociedade de Telecomunicações Financeiras Mundial – um consórcio que se reúne ao redor de 11 mil instituições financeiras conectadas em mais de 200 países e que processam por volta de 50 milhões/dia de mensagens sobre transferências financeiras.

Outra prioridade em discussão nos EUA é o “Genius Act” sancionado pelo presidente Trump em 18/07/25, que cria um quadro regulatório para as stablecoins de pagamento e entrará em vigor em 120 dias após sua regulamentação. As stablecoins são projetadas para pagamentos ou liquidação, lastreadas em reservas fiduciárias tradicionais e títulos do governo. É um marco importante para a indústria das criptomoedas, apesar de inúmeras preocupações de críticos sobre o potencial de crises financeiras, lavagem de dinheiro e outros problemas relacionados à falta de regulamentação das criptomoedas. Os EUA caminharam na contramão de inúmeros países como União Europeia, China, Índia, Rússia e Brasil, que decidiram primeiro aprovar legislações mais amplas para o setor (por exemplo, Marco Legal das Criptomoedas já em vigor no Brasil) para somente depois discutirem classes específicas de ativos digitais.

No fundo, trata-se da obrigatoriedade de vinculação futura das moedas digitais (stablecoins) ao lastro de títulos do Tesouro dos EUA, criando demanda cativa para os treasuries e garantindo que a moeda de referência das finanças digitais seja o dólar.  A meta é amarrar o futuro das finanças digitais ao dólar, garantindo que, mesmo em um novo paradigma tecnológico, os Estados Unidos permaneçam no centro do sistema. Segundo Trump “as stablecoins são importantes para garantir e expandir a hegemonia global do dólar”.

Daí o incômodo com o nosso queridinho PIX, que opera de forma bem sucedida fora do ecossistema do dólar e representa um embrião para novos sistemas independentes como o BRICSPAY, ameaça ao monopólio do Sistema SWIFT.

A desdolarização está em andamento

A desdolarização está acontecendo e vem para ficar. Um novo sistema monetário global onde não exista uma única moeda de reserva equivaleria a uma reorganização do poder político, econômico e militar: um reordenamento geopolítico não visto desde a Segunda Guerra Mundial. As condições para isso já estão dadas, senão vejamos:

  • A China já se equipara aos EUA como economia industrial.
  • A China já alcançou níveis de excelência em ciência e tecnologia.
  • Os EUA estão perdendo sua atratividade como modelo de desenvolvimento para os países do Sul Global.
  • Os EUA estão em franca decadência industrial e ficando para trás na competição para a China, que traçou sólidos planos comerciais como a Rota da Seda na Ásia, África e América Latina.
  • Os diversos países sancionados pelos EUA (Rússia, Irã, Venezuela, Cuba e China), além daqueles que compõem o BRICS e que estão sendo vítimas do tarifaço dos EUA, já começaram a negociar entre si, atingindo massa crítica tecnológica, militar e comercial.
  • Outras nações já se equiparam ao poder militar dos EUA que, apesar de ainda serem uma grande ameaça, não cogitam uma guerra nuclear. Ou me equivoco?
  • Os EUA não conseguiram isolar a Rússia, apesar das sanções ao gás russo na Europa e da inviabilização dos dutos Nordstream. Índia, China e vários outros países continuam comprando energia da Rússia.
  • É crescente a perda de credibilidade dos EUA por parte de inúmeros países sancionados, chantageados, vilipendiados e mantidos subjugados pela política do Big Stick. Há, portanto, uma crescente aversão à manutenção de ativos em dólares e/ou financiamento do déficit fiscal norte-americano, sujeitos a potenciais sanções/congelamentos. A própria Arábia Saudita está cada vez mais incrementando seu comércio bilateral com a China em yuan em vez de dólares.
  • Como Yuanzheng Cao, ex-economista-chefe do Banco da China, menciona em seu livro de 2018, Strategies for Internationalizing the Renminbi, a China pode internacionalizar o yuan sem tentar substituir o dólar e incorrer no ressentimento generalizado que se seguiria. Ela só precisa garantir o uso do yuan estrategicamente como uma das várias moedas e em uma ampla variedade de transações, como swaps de moeda.
  • Em recente reunião de cúpula entre Putin e Xi Jinping, foi dito por Putin: “Somos a favor do uso do yuan chinês nos acordos entre a Rússia e os países da Ásia, África e América Latina”. Trata-se da segunda maior economia do mundo e o maior exportador de energia, juntos e propensos a utilizar novo mecanismo de pagamentos, que reduzirá a importância do SWIFT e do dólar como âncora do sistema financeiro internacional. 

Novo Sistema de Pagamentos Multilateral Digital Chinês Yuan digital (e-CNY)

Foi recentemente conectado pelo Banco Popular da China o sistema de liquidação transfronteiriça do RMB digital (Renminbi, Yuan chinês), que engloba os dez países da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático – Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietnã) e seis países do Oriente Médio. Se for totalmente utilizado, aproximadamente 38% do volume de comércio mundial ficará fora do sistema SWIFT dominado pelo dólar americano e entrará diretamente no “momento do RMB digital”. Esse novo mecanismo foi descrito pela revista The Economist como “Batalha Avançada do Sistema Bretton Woods 2.0”, que está reescrevendo o código subjacente da economia global, com tecnologia blockchain.

Num primeiro teste entre Hong Kong e Abu Dhabi, uma empresa pagou a um fornecedor do Oriente Médio através do RMB digital. Os fundos não passaram mais por seis bancos intermediários, mas foram recebidos em tempo real através de um livro-razão distribuído, com melhor tecnologia, segurança e menores custos que no SWIFT.

A tecnologia blockchain utilizada pelo RMB digital não apenas torna as transações rastreáveis, mas também aplica automaticamente regras contra lavagem de dinheiro. No projeto “Dois Países, Dois Parques” entre China e Indonésia, o Industrial Bank usou o RMB digital para completar o primeiro pagamento transfronteiriço, feito de forma instantânea, teste do qual participaram 23 bancos centrais ao redor do mundo.

O volume de liquidação transfronteiriça de RMB dos países da ASEAN excedeu 5,8 trilhões de yuans em 2024, um aumento de 120% em relação a 2021. Seis países, incluindo Malásia e Cingapura, incluíram o RMB em suas reservas cambiais, e a Tailândia completou a primeira liquidação de petróleo com RMB digital. O BIS (Banco de Compensações Internacionais) comentou sobre essa onda de desdolarização: “A China está definindo as regras do jogo na era da moeda digital.”

A China está usando tecnologia blockchain para o RMB digital, integrado com a navegação Beidou (sistema de GPS chinês) e comunicação quântica para construir uma “Rota da Seda Digital”.

Presentemente, o sistema chinês de pagamentos transfronteiriços já excedeu a cifra de 1,2 trilhão de dólares americanos, cobrindo uma rede que alcança 200 países. Trata-se de uma revolução digital silenciosa que não tem volta. Será uma desdolarização em grande escala, como previsto por John Maynard Keynes quando propugnou a criação da nova moeda de reserva, o “bancor”, nos idos de Bretton Woods.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Terceira Guerra Mundial em andamento – O Brasil já entrou”, de Alfredo Maciel da Silveira.