
Foto de Alessandro Garofalo / Reuters
No belíssimo “História da Feiura” de Umberto Eco há um pequeno comentário que servirá como uma luva para avaliar a onda de crescimento da ultradireita europeia. Diz ele: “Na mesma medida em que Satanás desdramatiza seus traços, cresce, paralelamente, a demonização do inimigo, que ganha características satânicas… Desde a Antiguidade, o inimigo sempre foi antes de tudo o Outro, os estrangeiros…”.
O mesmo se pode dizer da ultradireita, ela desdramatiza seus traços, mas já não se esconde – embora se alce ao palco amparada numa mentira. Usa alguns truques, o primeiro deles é se parecer como algo novo. De fato, tem feito um empenho concentrado para se apresentar como novidade. É um esperto movimento de dupla face. Ao mesmo tempo que está o mais à direita possível do espectro político, assumindo uma verborrágica defesa do nacionalismo econômico (com curiosas nuanças), das fronteiras pátrias e dos valores os mais antigos e conservadores, posa de crítica ferrenha do establishment. No que não está só. Todo mundo de repente resolveu fazer política criticando a política e da noite para o dia todos se fizeram novos, puros e imaculados. O que surgiu de partido novo por aí…
Guiados por espertos publicitários cada um foi atrás de um rótulo chamativo e o mais distante possível da nomenclatura dos partidos tradicionais (dos 17 partidos pesquisados apenas cinco têm no nome a palavra partido). Porque para o universo da publicidade e da pura aparência não importa mudar o conteúdo, interessa é criar embalagens novas. E lá vão eles, os mais antigos e velhacos políticos do cenário travestidos de revolucionários da cena. A mentira, na verdade, segue sendo o material essencial desses pregoeiros da ruptura com o velho. A velha e boa (para eles) mentira.
O Vox da Espanha, por exemplo, foi criado de uma costela do Partido Popular (PP), “é uma derivação, uma decantação do aznarismo” (de José Maria Aznar, o quarto presidente desde o fim do franquismo que governou de 1996 a 2004, e até hoje uma forte influência na política conservadora espanhola). Santiago Abascal era militante do PP até sair em 2013 para fundar o novo partido. Durante quase a metade dos seus 44 anos de vida defendeu as cores e a bandeira do PP, onde entrou mal saído da adolescência. Não são poucos os que suspeitam de uma ação subterrânea de Aznar para a criação do Vox. Um dos mais notórios assessores do ex-presidente chama-se Rafael Bardají e é agora um dos ideólogos ou homem das sombras por detrás de Abascal. Dizem que é especialista no pensamento neocon americano e teria sido um árduo defensor da intervenção no Iraque. Em 2019, ingressou no conselho de administração da Expal Systems, uma empresa de armas e munições. Ao longo da carreira declarou apoio a Kadafi (sic) e admiração por… Chuck Norris (ei-lo aqui de novo – ver meu artigo anterior, publicado aqui* no Terapia Política).
Essa ideia do homem das sombras, sempre presente no mundo da política, tornou-se um mantra para os operadores que atuam sob a inspiração ou diretamente segundo a orientação do ideólogo mor, o americano Steve Bannon e sua empresa de assessoria (a The Movement, com sede em Bruxelas). Nas palavras do próprio Bannon: “Ser obscuro é bom. Dick Cheney. Darth Vader. Isso é poder.” – disse numa entrevista ao Hollywood Reporter.
É possível que já o estejam chamando de bruxo. Defenestrado do círculo íntimo de Donald Trump, instalou-se confortavelmente no velho mundo. As coincidências podem ter caído em seu colo. A história um dia dirá. O fato é que, desde então Boris Johnson se fez primeiro-ministro britânico e aprovou o quase nocauteado Brexit; o Vox saiu do nada para o terceiro posto no parlamento espanhol; e a extrema direita se mostra a cada dia mais revigorada. Tentar penetrar no universo desse “obscuro ex-publicitário do Tea Party” é como se meter no mundo fantasmático e intangível das celebridades no qual elas próprias tratam de alimentar a legenda que as esconde.
Bannon e o sócio belga
Em 2017, expelido da Casa Branca Steve Bannon se instala na Bélgica e se associa a um advogado e político chamado Mischael Modrikamen para fundarem o The Movement. O club precisa atrair clientes e Bannon se torna um autêntico caixeiro-viajante percorrendo as capitais europeias, de Budapeste à Roma e Madri. Quer filiações. No final de 2018, associam Viktor Orbán, e pouco antes, em setembro, já haviam anunciado a filiação de Matteo Salvini. Reúnem-se também com Rafael Bardají. Não param. A lista é ampla e assim também sua divulgação.
Na verdade, quando se olha mais de perto para a atuação de Bannon, do sócio e do club, o que se vê é a dificuldade de se estabelecer uma fronteira entre o ideólogo e o homem de negócios disposto a ganhar dinheiro com seu escritório de assessoria política. As duas atividades parecem estar umbilicalmente casadas.
Para além da obscena promiscuidade, no entanto, o discurso é tão nítido quanto uma mensagem publicitária encomendada pela Coca-Cola. Numa entrevista para o El Diario.es, em dezembro de 2018, Modrikamen disse que ele e seus amigos estão definindo “o mapa político para o próximo ano: entre os globalizadores, aqueles que não querem fronteiras e os que são soberanos e querem parar a migração e controlar o Islã”. E neste, mais que em qualquer outro tema, eles não tergiversam, deixam claro que esta é uma das suas principais bandeiras, se não a principal. O problema, para os outros, é o combustível que os alimenta. A xenofobia, a rejeição ao estrangeiro, a demonização do outro. Um encadeamento diabólico pelo qual a Europa já passou e que desgraçadamente parte dela está disposta a apagar da memória.
Que sociedade eles querem?
Por trás dos discursos populistas, das peremptórias pregações antiestablishment, das promessas de proteção contra as ameaças bárbaras, do estímulo ao rancor como combustível para o crescimento eleitoral, as minúcias da pesquisa dão algumas pistas do quão cruel e retrógrada é a sociedade desejada pela ultradireita da Europa. Infelizmente, as questões voltadas a indicar os contornos desse mundo não são tão abundantes quanto poderiam ser. Mesmo assim, dois exemplos são suficientes para vislumbrarmos um esboço de como seria porque, na realidade, esse mundo nada tem de novo.
Um dos itens diz respeito, por exemplo, à “segurança e criminalidade”. Para a ultradireita a insegurança pública é resultado, entre outras coisas, da permissividade para com os delinquentes. O que apregoam a partir daí, sem dubiedade e num nível de coesão bastante significativo, é o endurecimento das leis e das penas, a “proteção das ações de legítima defesa”, a pena de prisão perpétua e até de morte (na completa contramão da história europeia contemporânea), o recrudescimento dos castigos aos menores de idade e das condições para se obter liberdade condicional. Como o aumento da insegurança seria resultado da permissividade, para a correção do defeito é preciso mais punição, maior velocidade e contundência.
Outro tema sugerido pela enquete se refere à “família e valores”. A abertura ao novo, às transformações, muitas das quais já plenamente incorporadas e assimiladas pela sociedade europeia, lhes aparece quase como uma aberração. Aqui, como não poderia deixar de ser, a ultradireita é exatamente o que a etiqueta nos faz supor, radicalmente antiquada, um posto de guarda (rígido e armado até os dentes) de valores ultratradicionais. Sua referência é o passado, a volta atrás é a âncora do seu desejo. Refrear. Reprimir. A psicanálise tem um nome para isso. Recalcar, custe o que custar.
Família é um homem, uma mulher e filhos. Como consequência, rechaçam as “iniciativas progressistas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e a eutanásia”. A Espanha aprovou faz pouco, no começo de 2020, uma lei autorizando a eutanásia, o Vox e o PP foram os únicos dentre os principais partidos a votarem contra, embora no interior do PP muitas vozes mostraram descontentamento com a decisão da cúpula. Ao mesmo tempo, são naturalmente hostis aos movimentos feministas e às políticas de gênero, como mostrei no artigo publicado aqui** em que cito a pregação de um dos líderes do Fidesz da Hungria.
Por mais que mudem de roupa, o cheiro de naftalina não os abandona.






