Entender o mundo de maneira metódica nunca foi tarefa fácil e foram os historiadores, os filósofos e os naturalistas que dedicaram mais tempo desenvolvendo ferramentas para isso. A dialética hegeliana, que busca uma coerência lógica na história; a semiótica, que é o estudo dos símbolos e suas representações; e a psicologia evolutiva, que investiga nossos hábitos com base na teoria da evolução, são exemplos de modelos usados para entender como chegamos aqui.
A condição pós-moderna, já descrita em artigo anterior publicado neste blog, não deixa de ser uma dessas ferramentas ou modelos de entendimento da sociedade. Nele a descrevi como sendo uma desilusão com a verdade e a consequente proliferação de pequenas narrativas explicativas sobre o mundo. Essa condição de suspeita permanente teria, como efeitos colaterais: o niilismo daqueles que se perdem no oceano de narrativas; o negacionismo científico daqueles que se aproveitam da pluralidade de visões para, intencionalmente, criar narrativas falaciosas com fins político-financeiros; e, por fim, o gradual desprendimento do indivíduo em relação à realidade e sua aproximação de um mundo de ilusões que o filósofo francês Jean Baudrillard chamou de hiper-real. Naquele texto, a ciência é apontada como o único lastro que nós temos com o real e daí a crescente importância de cada cientista e de seus esforços de divulgação científica.
Aqui aprofundamos um pouco mais esse terceiro sintoma, a hiper-realidade. Damos uma especial atenção à participação dessa traiçoeira faceta da pós-modernidade na ojeriza que parte da população e o próprio governo desenvolveram em relação à vacina chinesa, apontando, em seguida, caminhos para a sua superação.
Antes de tudo, cabe ressaltar que não existe muita disputa na filosofia sobre a existência do real. Desde Descartes e seu “penso logo existo”, a realidade não é seriamente questionada. Debate muito maior existe hoje sobre a existência da ilusão como participante dessa realidade. Isso mesmo. Unicórnios, elfos, duendes e bichos-papões existiriam, segundo algumas correntes filosóficas. Sobre esse assunto, o livro “Por que o mundo não existe” do filósofo alemão Markus Gabriel é bastante explicativo.
Tendo isso em mente e concordando sobre a existência do real, fica bem evidente que quanto mais próximo da realidade estivermos, seja no discurso, seja na ação, melhor para nós. Tente atravessar a BR 040 sem olhar para os lados ou imaginando que lá não há carros ou caminhões e verá a importância de distinguirmos entre real e ilusão. Embora esse exemplo seja extremo, tais escolhas se apresentam em nossa vida cotidiana com grande frequência. Isso porque, com a referida proliferação de narrativas, tem se tornado cada vez mais fácil embarcar em pseudoentendimentos da realidade. Essas narrativas equivocadas apresentam, por sua vez, um padrão que consiste na gradual substituição do real pela cópia de sua representação do mundo. Como veremos abaixo, tal distanciamento do real pode ser casual ou fruto de manipulação intencional de narrativas, seja pela sociedade de consumo, seja por grupos de negacionistas organizados e com fins muito específicos. Mas como funciona o hiper-real?
Sabemos que o real é intangível e, mesmo que algumas de nossas hipóteses estivessem absolutamente corretas e, portanto, correspondessem perfeitamente à realidade, jamais teríamos como ter certeza disso. Estaremos sempre imersos em um jogo de representações. Assim, quando desenhamos uma árvore ou mesmo quando formamos sua imagem em nossas retinas, construímos uma representação da árvore, mas ela não é aquele vegetal em si. Ela é apenas uma cópia dele. O hiper-real aparece quando passamos a copiar a cópia seguidas vezes e acabamos perdendo qualquer conexão com o original. Nesse ponto, nos desprendemos totalmente da realidade e passamos a tomar a cópia pelo real.
Mesmo se desprendendo da realidade, entretanto, o hiper-real carrega parte de sua simbologia, como um telefone celular, que é tudo, menos telefone. Isso é usual também em ambientes como empresas de marketing, no mundo do entretenimento (como é o caso da Disney e parte dos games), nas redes sociais (Facebook, Instagram, etc.) e na bolsa de valores. Nesses locais, o conceito em si se manifesta de maneira proposital e inofensiva, em certa medida. Mas quando levado ao mundo das narrativas públicas, ele começa a gerar problemas.
Um exemplo bastante atual desse processo é a noção de família. Famílias são grupos de pessoas ligadas por relações de parentesco ou afetivas. Esse é nosso mundo real. As famílias estão entre as entidades mais importantes de uma sociedade. Narrativas equivocadas podem, entretanto, nos afastar da realidade. Esse é o caso daquelas promovidas pelo fanatismo religioso, nas quais somente uma determinada configuração de família convém ao credo. Atuando às avessas da realidade, essas narrativas se apropriam da alcunha (palavra) e de seu valor simbólico, mas não de seu conteúdo, para, a partir disso, substituir a família real por aquela de sua narrativa. Não precisamos, absolutamente, enumerar a quantidade de problemas que decorrem da existência do hiper-real no seio de partidos políticos em um país como o Brasil. As consequências vão desde dificuldades burocráticas no preenchimento de formulários (título de eleitor, receita federal, etc.) e de problemas na adoção de menores ou no recebimento de pensões, até na real discriminação e no bullying social.
Filmes pornográficos são, por sua vez, um dos exemplos mais usados por filósofos na explicação do hiper-real. Os filmes capturam cenas de sexo que não são reais, mas sim sua cópia, ou seja, um sexo “simulado”. A partir de então, salvo exceções, esses filmes não se contentam com a sua representação fidedigna e passam a ir bem além. Mulheres e homens cada vez mais bonitos, bem dotados e performáticos tornam-se, gradativamente, distantes do real. Em termos teóricos (e práticos!), com o tempo, sequer é mais necessário que as formas ali presentes sejam humanas. As formas humanas podem ser substituídas (e.g. peças de roupas), fragmentadas (peitos, pés, boca…), aumentadas, infladas, animalizadas, fetichizadas, tudo com base em símbolos que restam de suas cópias originais. Assim, em pouco tempo, o que fazemos em casa, entre quatro paredes, deixa de ser sexo, da mesma forma que um telefone fixo que, ao menos na ótica das crianças, não faz nada que um telefone “de verdade” (smartfone) faz.
Mais um excelente exemplo disso é o filme “Ela” (Her), no qual o protagonista Theodore (Joaquin Phoenix), que ignorava uma amiga de carne e osso que estava sempre ao seu lado, desenvolve uma paixão por um sistema operacional que, de mulher, só tinha a cópia da voz.
Na política é a mesma coisa. Vivemos em uma fantasia patriarcal que nos faz valorizar figuras paternas incorruptíveis. Heróis de guerra, quem sabe? Caras corajosos e fortes que coloquem a vida em risco por nós, por nossa democracia e por nosso povo – esse é o herói. Mas, na falta deles, quem sabe, bastaria uma patente para dar conta do recado? Vejam a proliferação de “delegados” entre os candidatos a prefeito em nossas últimas eleições! Mesmo jamais tendo sido heróis em guerra alguma, eles têm o linguajar, a roupa e o semblante. Fardados e fazendo continência, falam em patriotismo e em honra. Com o tempo, a farda e a patente passam a contar mesmo sozinhas, sem nenhum conteúdo adicional necessário. Uma bandeira enrolada no corpo se torna, igualmente, mais patriótica que o patriotismo em si, que deixa de importar. Então, passamos a ver pessoas fardadas ou enroladas em bandeiras atacando o país, como no caso do ataque ao STF, e começamos a entender a diferença entre a cópia da representação e o representado em si. A cópia não tem o conteúdo. A cópia é só um simulacro, para o qual o real nem existe mais. A hiper-realidade estará completa exatamente quando o simulacro for escolhido mesmo na presença do herói original.
A cópia da cópia que, embora oca, é tomada por real é a principal característica do hiper-real. Não importa mais se aquilo é um ser humano ou um Frankenstein criado pela indústria do sexo. Não importa mais se aquele cara é um político capaz e que zele pelo país, importa o que diz a bandeira na qual ele se enrola. Não importa mais a mensagem de Jesus, importa o pastor, seu representante, mesmo que esse espalhe o ódio e a intolerância. Não importa mais a família real, importa aquela que a minha narrativa hiper-real deseja. O real pode ser morto, preso, escorraçado, banido. Não importa mais o real, importa o dito.
No último debate entre os dois candidatos à Casa Branca, o fracassado candidato à reeleição Donald Trump, um notório defensor de supremacistas brancos, repetiu em alto e bom som que “I’m the least racist person in this room” (eu sou a pessoa menos racista deste salão), mesmo diante de uma moderadora negra. Ele se sentiu confortável para falar aquilo em voz alta porque, para ele e para seu público fiel, a realidade estava tão distante que apenas aquela frase já seria suficiente para superar o assunto. Assim, a frase compunha exatamente o elemento da narrativa fantasiosa que a sua base precisava, na medida em que nela o próprio conceito de racismo é oco, sem conteúdo. A cópia da cópia da cópia.
O caso da CoronaVac é emblemático pela sua seriedade. A vacina é a solução para um problema de saúde pública e sua liberação para uso pela Anvisa é uma decisão técnica de suma importância. Qualquer dúvida que paire sobre a confiabilidade desse órgão poderia ter resultados catastróficos como a não adesão da população à vacina ou pior, a escolha errada de uma vacina que pode resultar no não controle da pandemia. Tal decisão deve, então, ser fruto da ponderação de especialistas, assim como deve ser a própria obrigatoriedade ou não da vacinação, por faixa etária.
Acontece que a vacina não é vista como ligada à área da saúde. Nas narrativas negacionistas, esta aparece como instrumento político de poder. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, onde a polarização é mais aguda e o presidente é o negacionista original e não a sua cópia, boa parte da população se recusa a usar máscaras, acredita que o vírus não existe (seria um vírus político) e se recusará peremptoriamente a tomar a vacina, principalmente, se ela for “comunista”. Hiper-realidade pura. Uma vacina comunista! O resultado disso não era difícil de prever. 270 mil mortes, sendo, no momento, 3 mil por dia. O real esmurra a porta por lá, mas o presidente e sua base não acordam.
Aqui no Brasil, dada a força das instituições, o combate à doença ainda é possível. Nós precisamos resgatar, entretanto, ao menos por alguns dias, parte da população que, por mera ignorância científica, embarcou no mundo hiper-real negacionista, no qual cientistas são políticos e políticos são cientistas. Segundo a revista Piauí (30/10/2020), faz parte dessa hiper-realidade também a crença de que a CoronaVac provocaria danos irreversíveis ao DNA, que várias mortes estariam sendo escondidas da população e que ela estaria sendo produzida a partir de células de fetos abortados.
Theodore, o referido protagonista do filme “Ela”, percebeu que tinha embarcado no hiper-real antes que o pior acontecesse. Na cena final do filme, ele fita o horizonte, do alto de seu prédio e, com um sorriso nos olhos, curte a vista do real. Para ter essa vista ou, ao menos, algo mais próximo a ela, a ciência é nossa mais poderosa aliada, juntamente com modelos como o da pós-modernidade, que uso aqui.
Embora a vacina chinesa CoronaVac, a mais avançada e segura em desenvolvimento, tenha ficado fora do plano de vacinação apresentado pelo Ministério da Saúde, os sinais vindos da eleição americana apontam para a possibilidade de vencermos a poderosíssima indústria de fake news e a irresponsabilidade governamental. O empenho de cientistas, formadores de opinião (incluindo políticos), a ação ativa de nosso judiciário e o bom trabalho de informação e convencimento de parte representativa de nossa mídia podem forçar a abertura de uma janela de oportunidade que nos permita bloquear as narrativas negacionistas que hoje trabalham contra o combate apropriado à pandemia.
Caso não consigamos fazê-lo e escolhamos a vacina errada por estarmos vivendo no mundo hiper-real, poderemos ter fim semelhante ao daqueles que acreditam que os caminhões da BR 040 sejam uma mera ilusão.