Talvez nenhuma outra questão contemporânea tenha tanta repercussão na mídia internacional quanto o conflito palestino-israelense. As interpretações se multiplicam como as imagens em um caleidoscópio em movimento. Interromper este embaralhar de visões é um ato necessário para pensar soluções de paz. As partes terão de aceitar um retorno ao processo abortado dos Acordos de Oslo e repensar uma forma de construir dois estados em um território complicado.

A suspensão de poucos dias dos ataques, alcançada por um acordo mediado pelo Qatar, ainda que frágil e incerto, de certa forma colocou na mesa o Hamas e Israel. Por causa dele, no mínimo, vidas serão poupadas. Talvez seja uma oportunidade de resgatar um pouco da humanidade, mesmo quando todos os indícios apontam para o contrário. De toda forma, abre um espaço para refletir sobre o depois.

A brutalidade desta guerra permanecerá gravada na memória. Ao analisar os recentes eventos no Oriente Médio, é imperativo iniciar condenando as ações terroristas perpetradas pelo Hamas. Foi uma ofensiva bélica voltada para o assassinato e sequestro de civis desarmados, não para atingir alvos militares, sem falar no uso de civis como barricadas humanas para defesa dos seus próprios membros e instalações bélicas.

As palavras do escritor israelense Amós Oz, ditas em 2016, para outras guerras, parecem ter sido escritas agora: é uma guerra travada contra fanáticos. No entanto, como o autor explica, chamar os fanáticos de “selvagens terroristas” não dá carta branca para o governo israelense fazer o que quiser, menos ainda “na lixeira a luta do povo palestino por seu direito de se libertar”. Só para fanáticos os fins justificam o uso de qualquer meio.

A chacina tem uma história! Sem dúvidas. E nessa história, a maior responsabilidade pelos problemas recai sobre os governos de direita que comandaram Israel nestas três últimas décadas.

Este ensaio concentra esforços para pensar a paz. Isso, mesmo diante da resistência de muitos atores poderosos que estão, de maneira indireta, envolvidos e interessados na continuidade do conflito. Vale recordar que os Acordos de Oslo, assinados em 1993 e 1995 também desafiaram as expectativas. Não existe na história moderna um aperto de mãos mais envergonhado do que aquele entre Yasser Arafat e Yitzak Rabin, nos jardins da Casa Branca. Inimigos por décadas, eles se reconheceram mutuamente: “Israel reconheceu a OLP como a representante legítima do povo palestino, enquanto a OLP reconheceu o Estado de Israel”.

O Hamas, em árabe Movimento de Resistência Islâmica, nunca aceitou o acordo e se expandiu na luta contra o acordo. Israel também não. Rabin foi assassinado pela extrema direita israelense em 1995, esta que integra até hoje o governo. Faz quase três décadas que abriram as portas da hegemonia quase ininterrupta de governos que jogaram no lixo a paz de Oslo e o Israel trabalhista e socialdemocrata. Netanyahu, o protagonista desta inflexão, foi paulatinamente cedendo espaços a ideologias seculares e religiosas cada vez menos tolerantes à presença de não judeus a oeste do Rio Jordão.

As eleições de 1996 mostraram um Israel dividido. Os trabalhistas obtiveram 818 mil votos e conquistaram 34 assentos, o Likud, 767 mil votos e 32 assentos. Nas eleições para primeiro-ministro, Shimon Peres recebeu 1,4 milhão de votos e perdeu para Netanyahu por 71 mil votos (menos de 1%).

No que diz respeito a Oslo, o debate eleitoral em Israel pode ser reduzido a algumas poucas palavras: “paz para segurança” versus “segurança para paz”. Venceu primeiro segurança, depois paz, liderada por Netanyahu, do Likud, com uma big stick policy baseada num exército forte, no enfraquecimento das lideranças palestinas, no controle da infraestrutura e na expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia.

É inevitável comparar as intolerâncias da extrema direita israelense aos não judeus às políticas do Hamas. Ambos querem países que vão do Rio Jordão ao mar. Ambos querem jogar o outro no mar, ou seja, sua aniquilação ou exílio. Lembra um ótimo filme, uma comédia, “Le cochon de Gaza”, onde o problema era onde colocar o porco, rejeitado por judeus e muçulmanos.

Fazendo uma breve digressão, vale chamar a atenção para o fato de que grupos de esquerda no Rio de Janeiro chamam as manifestações de apoio à causa palestina usando o mesmo lema do Hamas: “Fora Israel da Palestina!; Palestina livre do Rio Jordão ao Mar!” A discussão de nuances desse assunto na esquerda brasileira ultrapassa a abrangência deste ensaio, mas é relevante pontuar que Lula tem defendido  dois estados independentes.

O rumo belicista assumido por Israel agradou ao Hamas (e também ao Hezbollah e outros grupos terroristas) que se alimenta do conflito e tem dificuldades para lidar com a democracia e a paz. E, neste movimento de rasgar Oslo, a OLP perdeu sua capacidade de se manter como liderança palestina. O golpe fatal se deu quando Israel se retirou atabalhoadamente de Gaza em 2005 e abriu o território ao Hamas.

Mudando o que precisa ser mudado, os dilemas de 2023 guardam similaridade aos de Oslo, mesmo diante das enormes transformações mundiais. O dilema é o mesmo: segurança versus paz, de onde germine a segurança.

Focando nas forças diretamente envolvidas, Israel, Hamas e Autoridade Palestina, há indícios de que, uma vez mais, as iniciativas para a paz repousam nas mãos de Israel (e dos Estados Unidos). O editorial do Haaretz, um dos principais jornais de Israel, dá mais do que uma pista do que precisa ser feito: “Netanyahu não é a solução, mas sim o problema”. (08/11/2023).

Ele que é o responsável por levar ao governo “párias detestáveis” dos partidos Otzma Yehudit e Sionismo Religioso, que precisam ser excluídos imediatamente do gabinete ministerial. Entre tantos motivos, por incentivarem colonos israelenses da Cisjordânia a usarem a desculpa da guerra contra o Hamas em Gaza para expulsar milhares de palestinos de suas casas e terras. Mudanças que vinham acontecendo há muito tempo agora se aceleraram e se tornaram ainda mais violentas, o que pode mudar irreversivelmente a Cisjordânia.

O mesmo Haaretz, em editorial, fez um chamado dramático: “Alguém precisa parar com esse violento e perigoso processo. Enquanto as FDI estão lutando tanto no sul quanto no norte, os colonos estão instigando outra guerra”. E ninguém está impedindo os colonos, nem está pensando em proteger a segurança dos palestinos.

Só a inversão da orientação política de Israel vai criar condições necessárias para um acordo, embora não seja suficiente se não houver mudanças profundas nos interlocutores palestinos.

Apostar de novo na supremacia militar para se impor na região é, no mínimo, uma aposta de alto risco, uma postura de acomodação passiva, pois Israel é, até certo ponto, um país dependente de decisões que são tomadas fora de suas fronteiras, notadamente pelos Estados Unidos, que injeta anualmente bilhões de dólares na economia, em sua maior parte para compra, produção e desenvolvimento de material bélico, pesquisas e até para financiar as expansões dos assentamentos na Cisjordânia, nesse caso diretamente pela comunidade judaica ortodoxa americana.

Quando se afirma que a responsabilidade pela iniciativa de paz recai sobre Israel, isso não é retórica. Visitando a história das guerras do século XX, o conhecimento acumulado mostra que os casos bem sucedidos foram de uma paz conduzida pelo vencedor ou pelo mais forte, mas fazendo concessões para garantir uma paz duradoura e vantajosa. Os formatos de ocupação (Cisjordânia) ou cerco (Gaza) impostos por Israel são sinônimos de fracasso.

O certo é que Israel terá de ceder, extirpar da própria carne, por exemplo, o câncer dos colonos invasores, sejam seculares ou religiosos, ao mesmo tempo em que terá de  ser um aliado engajado na construção do Estado Palestino independente, ajudando na montagem de esquemas financeiros e operacionais para coisas tão básicas quanto água, energia e emprego. O que não significa usar este trunfo para impedir a independência.

O acordo de Oslo parece ser um bom recomeço. Como estava previsto, era para ter sido feito um plano contemplando soluções parciais ou definitivas das quatro grandes questões: fronteiras, refugiados, Jerusalém e segurança.

Israel enfrentará um custo alto para restabelecer o respeito às fronteiras previamente aceitas, principalmente na Cisjordânia. E os palestinos? Há décadas estão sob a Nakba.

Um dos desafios mais intrincados nesta equação é o interlocutor político dos palestinos. A Autoridade Palestina está muito enfraquecida. No conflito, é praticamente um espectador passivo, vendo roubarem pedaços do território por fascistas israelenses, seculares e religiosos, e Gaza pelo Hamas.

Sobre o Hamas pouco se pode dizer. Segundo Amaney Jamal, cientista política da Universidade de Princeton, numa pesquisa feita pouco antes dos ataques do Hamas, 67% da população de Gaza não confiava no poder “corrupto” e “autoritário” do Hamas.[1] Mas assim como a OLP, são essas as forças políticas que estão lá e negociação se faz entre interlocutores mutuamente reconhecidos. Fica a incerteza de como será escrito o primeiro parágrafo de um novo Oslo: “Reconhecimento Mútuo: Israel reconheceu a ???? como representante legítimo do povo palestino, enquanto ????  reconheceu o Estado de Israel.”

Lamentavelmente, antes deste artigo ser publicado, a trégua foi suspensa e voltaram os ataques do Hamas e de Israel.

Nota:[1] A 8ª edição da pesquisa intitulada “O que os palestinos realmente pensam do Hamas”, foi realizada entre o final de setembro e o dia 6 de outubro, com uma amostra de 790 pessoas na Cisjordânia e 399 na Faixa de Gaza. A pesquisa foi interrompida pelos ataques do Hamas a Israel.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor. 

Leia também “Sociedades da inimizade“, de Luiz Marques.