
Na primeira vez em que Geraldo ouviu os estampidos das balas surrando a carroceria do Caveirão sentiu muito medo. Suor frio lhe escorria da testa e contornava os olhos arregalados, evidenciando o sentimento. Depois de tanto tempo, Geraldo ainda tem medo, só não tem mais suor frio e nem olhos arregalados. Seu medo fica todo do lado de dentro e só o põe para fora quando começa a atirar. Daí em diante já não sabe bem o que sente, nem sabe se sente. Vai no automático. Repete o treinamento e para o não treinado age na base do instinto de sobrevivência e na certeza de seu dever de matar para não morrer. Não queria estar ali. Foi porque mandaram e seu dever é obedecer.
Na primeira vez em que Grilo atirou com o fuzil sentiu medo e alegria ao mesmo tempo. Mal tinha deixado a idade de ter medo do escuro e de barulho alto e já estava ali, soldado de fuzil na mão. Cheio de si. Cheio de marra. Sentia nas mãos e no espírito o imenso poder de matar. Depois de tanto matar e quase morrer, ainda tem medo e alegria. A marra é ainda maior. Marra de gerente. Quando o tiroteio começa se esquece da marra e fica só o medo. Gesticula e grita. Move-se pelo instinto de sobrevivência e certeza de que se não matar, morre. Não queria estar ali. Não queria aquela vida. Queria aquela que o pessoal do asfalto tem. Queria carro, viagem, comida bacana e mulher bonita. Mas tem certeza de que não tem jeito. Para ter alguma coisa da vida, vai ter que tomar.
Na primeira vez em que Dona Glória ouviu tiros sentiu muito medo. Escondeu-se embaixo da cama. Seu medo mudou com o tempo. Ainda é medo, mas não o mesmo medo. Nem maior, nem menor, só diferente. Tem medo de levar tiro. Tem medo de que a polícia entre na sua casa e bata nela ou leve suas coisas. Tem medo de que o pessoal do movimento entre em sua casa e bata nela ou leve suas coisas. Tem medo de que as crianças da rua deixem de soltar pipas e passem a soltar tiros. Tem medo do Comando, da Milícia e do outro Comando. Tem medo da vida ser sempre assim. Não queria estar ali, mas não sabe para onde ir.
Na primeira vez em que se candidatou, Doutor Genilson teve medo de perder. Garantiu-se fazendo alianças com empresários, criminosos, religiosos e quem mais pudesse lhe dar votos. Foi fácil porque todos eles queriam e querem a mesma coisa: gente barata para trabalhar, extorquir ou doar. E gente barata vota do mesmo jeito que gente de trabalho caro que não se pode extorquir e que só doa se estiver a fim. Venceu. Mas o medo não passou. Tem medo de não se reeleger. Tem medo de se olhar no espelho e se sentir irrelevante, sem poder. De se sentir comum. De se sentir medroso. Quer estar no Palácio. Não quer estar na rua perigosa e nem naquelas favelas sujas e cheias de gente barata.
Na última vez em que Geraldo ouviu estampidos não sentiu mais medo. Na última vez em que Grilo atirou não sentiu medo e nem alegria. Na última vez em que Dona Glória ouviu tiros não sentiu mais nada. A última vez foi a última para os três.
Doutor Genilson ficou feliz. Apareceu bem na entrevista. Perdeu o medo de perder porque sabe que, na próxima vez, terá o voto de toda aquela gente que, além de medo, desejo e nojo, já não sente mais nada.
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Ilustração: Mihai Cauli
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